PARA
NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES
Passados os calores da campanha eleitoral, talvez
seja o momento oportuno para se fazer algumas reflexões, que até o domingo
último certamente seriam vistas como propaganda direta ou indireta para ou
contra algum dos candidatos. O que precisamos verdadeiramente em matéria de
política não é elegermos salvadores da pátria, nem verdades absolutas e muito
menos encetarmos no debate político qualquer visão maniqueísta e excessivamente
simplista da vida. O momento presente exige uma análise séria e realista da
realidade, porque por mais que se afirme que a democracia brasileira esteja
consolidada, a manutenção de um regime de liberdade sempre será tênue e exigirá
perpétua vigilância. Acima das cores partidárias, deverá estar a defesa de
valores essenciais a todos coletiva e individualmente considerados, no que
ressaltamos as liberdades em geral e a dignidade da pessoa humana em
particular. Não se trata de admoestar o leitor com qualquer discurso constitucionalista,
mas na verdade de sobrelevar esses valores como acima de qualquer ciência, de
qualquer ideologia ou mesmo de qualquer oportunismo eleitoral.
Em junho de 2013, alguns maravilhados outros
temerosos, todos testemunhamos a tomada das ruas das principais cidades do país
por uma massa disforme e pujante de manifestantes que essencialmente
propugnavam mudanças, não se sentiam representados nem pelos políticos nem
pelos partidos do presente. Não era somente os trinta centavos do aumento
pretendido das tarifas públicas de transporte, mas a indignação contra a
corrupção que invade todos os rincões de poder país adentro; a falta de
compromisso dos parlamentares com as verdadeiras causas populares; o engodo ao
qual a cada dois anos todos os nacionais se submetem em cada eleição, sejam as
locais, sejam as nacionais ou regionais. Havia uma patente insatisfação não
somente com os políticos e partidos que os aglomeravam, mas antes disso com o
próprio sistema político estruturado a partir da Constituição Federal
brasileira. Pouco mais de um ano depois, as urnas nos informam que aquele
sentimento de renovação deu lugar a um incompreensivo continuísmo de todas as
forças políticas estabelecidas antes daquele histórico marco. Se a presidência
da República continua sob o jugo do PT, o governo do estado mais rico e
populoso do país segue entregue ao PSDB. No Rio de Janeiro, se reelege o
Governador que não por acaso era o vice daquele a quem exigiam a imediata
renúncia. No Ceará, assim como findou sendo a regra em quase todo o Nordeste, é
eleito o ungido do Governador de plantão. Será que mudamos tanto e tão
profundamente que acabamos igual ao que éramos antes? Que lições tirar das
manifestações de junho em comparação ao resultado das eleições de outubro?
Muitos tratados haverão ainda de serem escritos
sobre esse tema. Os cursos relacionados às ciências sociais terão muito
material sobre o qual se debruçar e esmiuçar suas detidas vistas, por meio dos
quais certamente sacarão dezenas de mirabolantes teorias. Para nós,
preliminarmente nos parece certo que os manifestantes de junho não mudaram de
ideia nesse pouco mais de um ano, para se sentirem magicamente representados
pelos mesmos governantes de antes. Seguem não estando representados pelo
Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Executivo tanto quanto antes. A
conclusão primeira que nos parece advir das urnas é a da falência do sistema
que por detrás do discurso de que somente por intermédio da democracia se
conquistarão todas as liberdades, exclui espuriamente desse mesmo sistema representativo
uma significativa massa de estudantes, intelectuais, artistas e vanguardistas
de diversas espécies, que foram aqueles que saíram às ruas em protesto mas que
nada de positivo obtiveram como resposta das urnas. Estranhamente, a democracia
brasileira exclui do efetivo poder decisório as melhores cabeças e os mais
ávidos a dar cabo das desigualdades e injustiças sociais reinantes. Se
observarmos bem, a constatação é ainda mais tenebrosa, pois não é somente a
democracia brasileira que exclui seus melhores quadros da participatividade,
mas a democracia mundial, pois é inevitável aferir que a democracia europeia,
por exemplo, também padece do mesmo e talvez irremediável mal de não
representar os verdadeiros interesses da sociedade. Em seu Ensaio Sobre a Lucidez, o prêmio Nobel de Literatura, o português
José Saramago nos impinge tenebroso alerta: o inimigo dos tempos modernos é o
próprio governo democraticamente eleito.
A democracia por si mesma não nos representa, pois
os eleitos são paridos das práticas das dezenas de espécies de abuso. A
democracia, ensina por exemplo o sábio eleitoralista Fávila Ribeiro, pressupõe
uma completa igualdade entre os competidores, pois que do contrário, ela não
espelhará uma decisão soberana. No Brasil é cediço o conhecimento no sentido de
que aqueles que não abusarem do poder, jamais serão eleitos. E o abuso por si
só desequilibra a igualdade da competição. Logo, outra conclusão se impõe
quanto a todos os eleitos do presente processo eleitoral (talvez quase sem exceção),
que é a de que só lograram vitória no pleito graças à prática de alguma espécie
de abuso de poder. Nesse sentido, lembramos que abusar do poder não significa
exclusivamente a compra direta de votos, mas também o uso da máquina pública em
favor de candidaturas, a maquiagem falaciosa do marketing político, e às vezes
até a superioridade cultural de uns sobre os outros, além de tantas outras
espécies. Assim, a mazela da nossa democracia está antes de tudo na miséria do
nosso povo. Se é importante dar comida aos famintos, como fazem os programas
sociais da atualidade, mais ainda é instruir e dignificar os miseráveis, pois
somente a educação libertará verdadeiramente o homem, tornando-o em definitivo
igual aos demais membros da mesma sociedade. E a educação, convenhamos, é o
tema sobre o qual pouco se debate e muito menos ainda se estabelecem práticas
efetivas para a sua concretização. O Plano Nacional de Educação fala em dez por
cento do PIB para a educação nacional, porém é de se indagar a porcentagem desse
valor que será destinada ao aparelhamento estatal dos partidos políticos,
tomada a efeito por intermédio da corrupção, a exemplo do que se vem acontecendo
com a Petrobras. É triste, mas nos parece óbvio que os prometidos recursos do pré-sal não ficarão imunes a esta
nefasta realidade.
Não se tratará jamais de defender o fim da
democracia, mas de chamar a sociedade nacional à responsabilidade e consciência
no sentido de que para nos afirmarmos como uma nação verdadeiramente livre e
democrática, precisamos muito mais que simplesmente comparecermos às urnas a
cada dois anos. O sufrágio praticado da forma pela qual fazemos no Brasil longe
está de espelhar uma verdadeira democracia, pois uma democracia sem liberdade,
sem a possibilidade de verdadeira participação, sem se permitir representar os
milhares de brasileiros que acorreram, indignados, às ruas em junho do ano
pretérito, definitivamente não espelha nenhuma liberdade. Democracia sem
liberdade não é democracia, mas um engodo dela. Cuidado para não transformarmos
nossa sociedade em uma democracia de falácias, onde no discurso da televisão
somos livres e nas práticas da mídia e do governo escravos. Se somente a
educação conscientiza e liberta verdadeiramente, somente poderemos nos declarar
uma democracia efetiva desde quando toda a nossa população venha a ter acesso a
uma educação plena, integral e libertadora. Chega de testemunharmos eleições
onde a miséria do povo seja o fator decisório do sufrágio.