INEVITÁVEL (CONTO)
O
conhecia como a uma lenda, enquanto misterioso mago que aprendera os segredos
da alquimia espiritual, ou a arte de desvelar a paz e a harmonia mais profundas
mesmo em meio aos maiores tumultos da existência, através do que era capaz de
se manter o equilíbrio e a evolução pacífica rumo ao caminho de volta da
tortuosa estrada humana. Na verdade, ele
era mesmo um raro iluminado. Vê-lo pessoalmente, compreender que de fato era um
ser de existência corpórea; era um espírito em carne de verdade; e que, mesmo
tendo vencido memoráveis obstáculos continuava sendo um ser humano, em
essência, absolutamente idêntico a todos os outros da espécie. Com as mesmas
necessidades básicas de todos. Tudo isso me pôs profundamente reflexivo,
confesso.
As
rugas do seu rosto e o cansaço de sua tez denotavam os sacrifícios e tormentos
que tivera que se submeter para chegar ao que me parecia um estado de graça. O
olhar calmo e a mansidão da fala davam a certeza da pujante verdade contida em
suas sempre serenas palavras, ditas no ritmo de quem só as pronunciava quando
estava convicto não somente das verdades que expressavam, mas, sobretudo, do
merecimento do receptor em poder ouvi-las. Foi assim que disse:
§ 1º
A
história que vou te contar, começou a dizer o velho sábio, tem início no
momento de maior desterro de minha vida; quando, condenado já à morte iminente,
isolado e cheio de culpas e mágoas só pude me valer da fé e pedi com a potência
do meu querer a cura e a misericórdia de poder servir à causa do Criador. Nessa
noite, eu tive um sonho tão vívido que realidade nenhuma poderia ser mais
concreta que aquela. Nele, recebi a notícia da cura e a missão de cuidar da
minha própria alma gêmea, que tanto amava desde imemoráveis outras vidas. De
fato, no sonho estava intimamente agasalhado nos braços de uma mulher. Não
reconheci os traços do rosto dela, mas pela intensidade da energia que senti
emanar daquele ser era induvidoso saber se tratar de beleza superior. Esse
sentimento ficou tão impregnado em minhas entranhas, quase incomodando, que
escrevi uma carta a essa mulher e, convicto, a guardei para entregar no tempo
correto.
Pois
eis que foi no momento do maior medo e da mais completa solidão que emanei ao
Cósmico o desejo mais sincero e, por isso, mais potente de minha existência. O
Universo é mental, existe desde a Mente infinita do Incriado. O pedinte sincero,
quando se põe em harmonia com a Mente Divina é capaz de criar também. Todas as
possibilidades têm início na vontade e a mente humana, quando adequadamente utilizada,
é capaz sim de criar coisas.
§ 2º
As
vibrações se entranham em todas as coisas e são, na realidade, a verdadeira
essência delas. Só o que há são as vibrações emanadas do Pensamento Divino.
Elas se harmonizam conforme o seu grau de emanação, mais rápido e puro próximo à
divindade ou lento e grosseiro no âmago da matéria. Mas tudo são graus
diferentes da mesma vibração. Por isso ela também havia tido um sonho e sentido
o mesmo desejo e a idêntica energia, de maneira que as vibrações por mim
emanadas chegaram até ela. Era o mesmo desejo, a união plena do mesmo
sentimento.
A
partir desse instante se tornou absolutamente inevitável o encontro carnal do que
já estava faz muito unido em espírito. Como tudo é movimento, era inevitável
que ambos se pusessem em ação na intuitiva busca um do outro. Em silêncio, mas
nunca desatentos, saímos a percorrer o mundo, cada qual partindo de seu canto
sem saber para onde, nem em busca de quem, mas convictos de que era mesmo
inevitável o encontro.
§ 3º
O
novo só se cria a partir da união dos gêneros. É essa a fagulha gerativa,
regenerativa e criadora do Universo. Como é inevitável o surgimento do novo,
foi igualmente inevitável o encontro desse casal. Por maior que seja a Criação
sempre foi impossível o não encontro. Com naturalidade nos reconhecemos e
seguimos no propósito de construção da caminhada em conjunto rumo ao que nos
parecia o propósito comum.
Eu
a reconheci na carta que havia escrito antes de vê-la pela primeira vez, e ela
se reconheceu nos sentimentos expressos e nas cenas narradas na missiva. Era
uma prova da existência de uma história anterior a nós mesmos; uma
inquestionável evidência de que todas as coisas se interligam e conspiram umas
com as outras. Não fosse Divina essa orquestração seria inimaginável. Mas, como
tudo no Universo, aquilo também era inevitável.
§ 4º
Quando
é verdadeiro e incondicional o amor é inevitável sentir dor. O Universo se
expande e se contrai em um ritmo cíclico, contínuo e perpétuo. Funciona como um
pêndulo despendendo sempre a mesma energia para ir e vir, na mesma velocidade e
em idêntico movimento cíclico de ir e vir. A força do amor chama a provações e necessidades
e, após o primeiro momento de êxtase do casal, nos defrontamos com as
dificuldades em constância cada vez mais intensa e grave.
As
igualdades em perseverança e a aguerrividade das duas personalidades, foram os
primeiros motes para os desacertos, que viraram brigas, que viraram mágoas, que
viraram silêncios, que viraram distanciamento. O mesmo sentimento que atraía no
início agora era o motivo do afastamento. As duas coisas na mesma intensidade.
A imaturidade, tão própria daqueles jovens que éramos, nos arrastou para a
incompreensão mútua porque não éramos capazes de compreender que as provações
são a contraparte da dádiva do encontro de almas tão afins. Sem um não pode
haver o outro, pois o tanto que vem é o tanto que vai. Por isso a música do
Universo é tão rítmica e bela!
§ 5º
O
efeito é inevitável diante da causa, e os maus pensamentos e ações nos
separaram com a mesma intensidade que os bons desejos nos fizeram correr o
mundo, de desencontro em desencontro, até o único encontro que valeu realmente
a pena. Mas o Universo flui sempre no ritmo e em consonância com suas leis, de
tal forma que as mesmas sutis vibrações que uniram fizeram-nos repulsar um ao
outro. A culpa é de nenhum porque sempre foi inevitável a necessidade de que sentíssemos
a dor da perda do amor verdadeiro e do vazio da busca em outros de algo só
encontrável no verdadeiro amor, aquele encontro raro, que poucos conseguem ter
e que é irrepetível com qualquer outro. É como se realmente existissem almas
gêmeas que se buscariam eternamente em vida e em pós vida, num ciclo quase sem
fim, até o estado de nirvana.
Se
eram terríveis os assombros das conversas repetitivas, sem fim e sem sentido
dos momentos de virulenta discussão, o silêncio e a calmaria da ausência eram
mais morrediços ainda. Não havia paz nem em estarmos juntos nem distanciados.
Nenhum dos dois conseguia se apegar a outras pessoas, por mais que se dedicasse
a isso. Era inevitável tanto a dor da solidão quanto a da desassossegada
convivência. Era uma incógnita lição que o Universo nos apresentava.
§ 6º
Mas
afinal, e qual será a diferença entre o infinito da solidão e a clausura da
vida sociável? Não seriam polos distinto em grau, mas idênticos em essência,
assim como são a luz e a treva; o quente e o frio ou o amor e o ódio? Afinal,
tudo não é mesmo duplo; tem o seu par que é ao mesmo tempo semelhante e
dessemelhante, mudando apenas em intensidade? Da mesma forma que o amor de nós
dois se transmudou em ódio irracível; que o desejo não somente da companhia,
mas também da carne do outro virou instinto de separação e que a necessidade do
afeto e da empatia se transformou na busca consciente da solidão. Apesar do
paradoxo, sempre vivemos eu e ela o mesmo sentimento um pelo outro e fomos
firmes no propósito de sinceridade na apresentação das nossas verdades, umas
vezes opostas, outras idênticas, mas tantas outras vezes distantes e
indiferentes, apenas. Talvez em nada tenhamos sido diferentes dos outros casais.
Quando
a convivência vira dor, é hora de separar. Não se pode machucar o belo nem atentar
contra qualquer dignidade. Era inevitável aprender a viver sozinho.
§ 7º
E
só porque fui sozinho, pude me dedicar às ciências ocultas e me tornar herdeiro
dos alquimistas de Atlantida. Desde uma tradição nunca interrompida. Eu tenho a
chave que tu buscas e poderei te revelar em outro momento. Antes, terás ainda
algumas provações.
Era
uma pequena praça de Buenos Aires, próxima ao Obelisco. Eu, passante sempre
curioso quis descobrir a praça que Borges costumava passear e, achando aquela
praça, sentei-me em um dos bancos, para descansar um pouco e contemplar a
energia do local. Dali a pouco chegou o velho e simplesmente se sentou ao meu
lado, aguardando minha reação. Mesmo reconhecendo de quem se tratava por conta
de uma cicatriz marcante na mão esquerda, que ele deixou bem evidente, duvidei
de início ser realmente ele. Disse uma palavra de passe e ele respondeu sem
titubeio. Não havia como duvidar que era ele! Exato na oportunidade que eu
menos esperava.
Quando
teve certeza de que eu o havia reconhecido, foi falando sem que seu olhar
magnético me permitisse interrompê-lo. Disse tudo pausadamente, para ter
certeza que eu me lembraria de todas as coisas. Logo que acabou de falar se
levantou e foi embora, sem olhar mais para trás. Eu fiquei sem ação, deixei-o
ir passivamente. Passei bom tempo estático, quase que alheio a tudo que se
passava a minha volta. Tentando entender que coisa estranha, única e ao mesmo
tempo verdadeira havia acabado de vivenciar. Como se aquele lugar fosse mágico.
Depois de muito contemplar aquele insólito, me levantei e continuei o meu
passeio, sempre olhando bem para os lados, tentando sem sucesso reencontrar o
velho.
A
lição que ele tinha a apresentar era que a sabedoria mais profunda só é possível
aos solitários. Será mesmo que é preciso renunciar ao amor? Não haveria como alcançar
a sabedoria e o amor na mesma vida? Não restaria algum vazio perpétuo pela
falta do amor verdadeiro, por isso espontâneo e contante? Será mesmo que no
fundo de seu espírito, mesmo após todos os sofrimentos que passou, o velho não
desejaria reencontrar sua alma gêmea em outra vida, que, afinal, dada a idade com
que já contava, não deveria estar tão distante?
Se
é inevitável o amor, não seria assim?
Jorge Emicles
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