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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

 

 

INEVITÁVEL (CONTO)

 

                  



    A morte é inevitável porque houve um dia em que teve de ser inevitável o nascer. Foi assim que aquele portenho já avançado nos anos iniciou seu inesperado relato sobre o sentido e as descobertas de sua própria existência. Era ele um mago a quem, após anos de pesquisas e buscas insondáveis, houvera encontrado por um suposto, mas muito feliz acaso. Entre os bruxos, contudo, nunca haverá encontros ao acaso, conforme ele mesmo insinuou logo às preliminares da conversa. Por isso mesmo, não por acaso resolveu ele que eu teria o necessário discernimento para apreender a ímpar lição extraível da história que iniciaria a contar. Era talvez uma espécie de parábola da busca da sabedoria. Uma lição de vida pelo exemplo da prática, quem sabe. Não sei explicar.

    O conhecia como a uma lenda, enquanto misterioso mago que aprendera os segredos da alquimia espiritual, ou a arte de desvelar a paz e a harmonia mais profundas mesmo em meio aos maiores tumultos da existência, através do que era capaz de se manter o equilíbrio e a evolução pacífica rumo ao caminho de volta da tortuosa estrada humana.  Na verdade, ele era mesmo um raro iluminado. Vê-lo pessoalmente, compreender que de fato era um ser de existência corpórea; era um espírito em carne de verdade; e que, mesmo tendo vencido memoráveis obstáculos continuava sendo um ser humano, em essência, absolutamente idêntico a todos os outros da espécie. Com as mesmas necessidades básicas de todos. Tudo isso me pôs profundamente reflexivo, confesso.

    As rugas do seu rosto e o cansaço de sua tez denotavam os sacrifícios e tormentos que tivera que se submeter para chegar ao que me parecia um estado de graça. O olhar calmo e a mansidão da fala davam a certeza da pujante verdade contida em suas sempre serenas palavras, ditas no ritmo de quem só as pronunciava quando estava convicto não somente das verdades que expressavam, mas, sobretudo, do merecimento do receptor em poder ouvi-las. Foi assim que disse:

 

 

§ 1º

 

    A história que vou te contar, começou a dizer o velho sábio, tem início no momento de maior desterro de minha vida; quando, condenado já à morte iminente, isolado e cheio de culpas e mágoas só pude me valer da fé e pedi com a potência do meu querer a cura e a misericórdia de poder servir à causa do Criador. Nessa noite, eu tive um sonho tão vívido que realidade nenhuma poderia ser mais concreta que aquela. Nele, recebi a notícia da cura e a missão de cuidar da minha própria alma gêmea, que tanto amava desde imemoráveis outras vidas. De fato, no sonho estava intimamente agasalhado nos braços de uma mulher. Não reconheci os traços do rosto dela, mas pela intensidade da energia que senti emanar daquele ser era induvidoso saber se tratar de beleza superior. Esse sentimento ficou tão impregnado em minhas entranhas, quase incomodando, que escrevi uma carta a essa mulher e, convicto, a guardei para entregar no tempo correto.

    Pois eis que foi no momento do maior medo e da mais completa solidão que emanei ao Cósmico o desejo mais sincero e, por isso, mais potente de minha existência. O Universo é mental, existe desde a Mente infinita do Incriado. O pedinte sincero, quando se põe em harmonia com a Mente Divina é capaz de criar também. Todas as possibilidades têm início na vontade e a mente humana, quando adequadamente utilizada, é capaz sim de criar coisas.

 

§ 2º

 

    As vibrações se entranham em todas as coisas e são, na realidade, a verdadeira essência delas. Só o que há são as vibrações emanadas do Pensamento Divino. Elas se harmonizam conforme o seu grau de emanação, mais rápido e puro próximo à divindade ou lento e grosseiro no âmago da matéria. Mas tudo são graus diferentes da mesma vibração. Por isso ela também havia tido um sonho e sentido o mesmo desejo e a idêntica energia, de maneira que as vibrações por mim emanadas chegaram até ela. Era o mesmo desejo, a união plena do mesmo sentimento.

    A partir desse instante se tornou absolutamente inevitável o encontro carnal do que já estava faz muito unido em espírito. Como tudo é movimento, era inevitável que ambos se pusessem em ação na intuitiva busca um do outro. Em silêncio, mas nunca desatentos, saímos a percorrer o mundo, cada qual partindo de seu canto sem saber para onde, nem em busca de quem, mas convictos de que era mesmo inevitável o encontro.

 

§ 3º

 

    O novo só se cria a partir da união dos gêneros. É essa a fagulha gerativa, regenerativa e criadora do Universo. Como é inevitável o surgimento do novo, foi igualmente inevitável o encontro desse casal. Por maior que seja a Criação sempre foi impossível o não encontro. Com naturalidade nos reconhecemos e seguimos no propósito de construção da caminhada em conjunto rumo ao que nos parecia o propósito comum.

    Eu a reconheci na carta que havia escrito antes de vê-la pela primeira vez, e ela se reconheceu nos sentimentos expressos e nas cenas narradas na missiva. Era uma prova da existência de uma história anterior a nós mesmos; uma inquestionável evidência de que todas as coisas se interligam e conspiram umas com as outras. Não fosse Divina essa orquestração seria inimaginável. Mas, como tudo no Universo, aquilo também era inevitável.

 

§ 4º

 

    Quando é verdadeiro e incondicional o amor é inevitável sentir dor. O Universo se expande e se contrai em um ritmo cíclico, contínuo e perpétuo. Funciona como um pêndulo despendendo sempre a mesma energia para ir e vir, na mesma velocidade e em idêntico movimento cíclico de ir e vir. A força do amor chama a provações e necessidades e, após o primeiro momento de êxtase do casal, nos defrontamos com as dificuldades em constância cada vez mais intensa e grave.

    As igualdades em perseverança e a aguerrividade das duas personalidades, foram os primeiros motes para os desacertos, que viraram brigas, que viraram mágoas, que viraram silêncios, que viraram distanciamento. O mesmo sentimento que atraía no início agora era o motivo do afastamento. As duas coisas na mesma intensidade. A imaturidade, tão própria daqueles jovens que éramos, nos arrastou para a incompreensão mútua porque não éramos capazes de compreender que as provações são a contraparte da dádiva do encontro de almas tão afins. Sem um não pode haver o outro, pois o tanto que vem é o tanto que vai. Por isso a música do Universo é tão rítmica e bela!

 

§ 5º

 

    O efeito é inevitável diante da causa, e os maus pensamentos e ações nos separaram com a mesma intensidade que os bons desejos nos fizeram correr o mundo, de desencontro em desencontro, até o único encontro que valeu realmente a pena. Mas o Universo flui sempre no ritmo e em consonância com suas leis, de tal forma que as mesmas sutis vibrações que uniram fizeram-nos repulsar um ao outro. A culpa é de nenhum porque sempre foi inevitável a necessidade de que sentíssemos a dor da perda do amor verdadeiro e do vazio da busca em outros de algo só encontrável no verdadeiro amor, aquele encontro raro, que poucos conseguem ter e que é irrepetível com qualquer outro. É como se realmente existissem almas gêmeas que se buscariam eternamente em vida e em pós vida, num ciclo quase sem fim, até o estado de nirvana.

    Se eram terríveis os assombros das conversas repetitivas, sem fim e sem sentido dos momentos de virulenta discussão, o silêncio e a calmaria da ausência eram mais morrediços ainda. Não havia paz nem em estarmos juntos nem distanciados. Nenhum dos dois conseguia se apegar a outras pessoas, por mais que se dedicasse a isso. Era inevitável tanto a dor da solidão quanto a da desassossegada convivência. Era uma incógnita lição que o Universo nos apresentava.

 

§ 6º

 

    Mas afinal, e qual será a diferença entre o infinito da solidão e a clausura da vida sociável? Não seriam polos distinto em grau, mas idênticos em essência, assim como são a luz e a treva; o quente e o frio ou o amor e o ódio? Afinal, tudo não é mesmo duplo; tem o seu par que é ao mesmo tempo semelhante e dessemelhante, mudando apenas em intensidade? Da mesma forma que o amor de nós dois se transmudou em ódio irracível; que o desejo não somente da companhia, mas também da carne do outro virou instinto de separação e que a necessidade do afeto e da empatia se transformou na busca consciente da solidão. Apesar do paradoxo, sempre vivemos eu e ela o mesmo sentimento um pelo outro e fomos firmes no propósito de sinceridade na apresentação das nossas verdades, umas vezes opostas, outras idênticas, mas tantas outras vezes distantes e indiferentes, apenas. Talvez em nada tenhamos sido diferentes dos outros casais.

    Quando a convivência vira dor, é hora de separar. Não se pode machucar o belo nem atentar contra qualquer dignidade. Era inevitável aprender a viver sozinho.

 

§ 7º

 

    E só porque fui sozinho, pude me dedicar às ciências ocultas e me tornar herdeiro dos alquimistas de Atlantida. Desde uma tradição nunca interrompida. Eu tenho a chave que tu buscas e poderei te revelar em outro momento. Antes, terás ainda algumas provações.

 

 

    Era uma pequena praça de Buenos Aires, próxima ao Obelisco. Eu, passante sempre curioso quis descobrir a praça que Borges costumava passear e, achando aquela praça, sentei-me em um dos bancos, para descansar um pouco e contemplar a energia do local. Dali a pouco chegou o velho e simplesmente se sentou ao meu lado, aguardando minha reação. Mesmo reconhecendo de quem se tratava por conta de uma cicatriz marcante na mão esquerda, que ele deixou bem evidente, duvidei de início ser realmente ele. Disse uma palavra de passe e ele respondeu sem titubeio. Não havia como duvidar que era ele! Exato na oportunidade que eu menos esperava.

    Quando teve certeza de que eu o havia reconhecido, foi falando sem que seu olhar magnético me permitisse interrompê-lo. Disse tudo pausadamente, para ter certeza que eu me lembraria de todas as coisas. Logo que acabou de falar se levantou e foi embora, sem olhar mais para trás. Eu fiquei sem ação, deixei-o ir passivamente. Passei bom tempo estático, quase que alheio a tudo que se passava a minha volta. Tentando entender que coisa estranha, única e ao mesmo tempo verdadeira havia acabado de vivenciar. Como se aquele lugar fosse mágico. Depois de muito contemplar aquele insólito, me levantei e continuei o meu passeio, sempre olhando bem para os lados, tentando sem sucesso reencontrar o velho.

    A lição que ele tinha a apresentar era que a sabedoria mais profunda só é possível aos solitários. Será mesmo que é preciso renunciar ao amor? Não haveria como alcançar a sabedoria e o amor na mesma vida? Não restaria algum vazio perpétuo pela falta do amor verdadeiro, por isso espontâneo e contante? Será mesmo que no fundo de seu espírito, mesmo após todos os sofrimentos que passou, o velho não desejaria reencontrar sua alma gêmea em outra vida, que, afinal, dada a idade com que já contava, não deveria estar tão distante?

    Se é inevitável o amor, não seria assim?

 

Jorge Emicles

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