REALISMO JURÍDICO A BRASILEIRA
Primeiro,
foi o ridículo espetáculo de assistir em rede nacional uma senadora
inicialmente e depois um ror de parlamentares federais fazerem perguntas,
entonação e gestos inquisidores, mais condenando liminarmente que dispostos a
apurar qualquer verdade e por talvez centenas de vezes receber a resposta
protocolar, incialmente lida, mas depois de algumas dezenas de réplicas dita de
memória. De acordo com a ordem de habeas corpus parcialmente concedida e
segundo a orientação de minha defesa técnica me reservo o direito de ficar
calado. Foi esse o enredo melodramático do espaço do que é público da nossa
república brasilis, versão Comissão Parlamentar Mista dos Atos Golpistas
(CPMI do oito de janeiro). Meses depois, veio a bombástica notícia de que
aquele mesmo sujeito taciturno havia realizado uma delação premiada, estando
agora sujeito ao compromisso irrecusável da verdade, ao dever de produzir
provas contra si mesmo e ao compromisso de colaborar com as investigações.
Talvez,
diante do calor às vezes ensandecido das manchetes de jornal, nem precisássemos
advertir sobre os nomes que envolvem o rumoroso caso, mas, via de dúvidas,
deixaremos registrado para a posteridade se tratar aqui da inicial resistência
a falar e, em seguida o colaboracionismo delator do ex-ajudante de ordens do
ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Pelos benefícios prometidos na decisão
que homologou a delação, as verdades desveladas contra o chefe da quadrilha
devem ser de arrepiar. A conferir.
À
parte a veracidade da acusação, é de se indagar os motivos e a estrita
legalidade dela, pois, no pano de fundo de todo esse tumultuado processo
encontramos uma suprema corte estrategicamente empoderada através de uma
interpretação do direito nem sempre clara e republicana. Na prática, temos um
juiz prevento para todas as acusações; que conduz com mãos de ferro os
trabalhos de investigação, dirigindo-os propriamente, ao mesmo tempo em que
direciona os termos da denúncia a ser formulada, que presidirá o processo
respectivo e, na qualidade de relator, proferirá o voto condutor do veredicto,
que diferente da farsa acadêmica da neutralidade e alheamento dos juízes, será
fruto de conversas prévias e reservadas nos gabinetes do tribunal. E não
estamos nos referindo ao ex-juiz Sérgio Moro, veja bem.
No
mínimo, todo esse imbróglio está a exigir um debate acadêmico mais adequado e
profundo a respeito da aplicação ao caso de princípios comezinhos do direito
brasileiro, tais quais o do juiz natural (que garante ao cidadão que somente
poderá vir a ser julgado pelo órgão da jurisdição previamente estabelecido
pelas regras de competência), o da imparcialidade do julgador (que garante que
aquele que participou de outras atividades do processo, como a prévia
investigação ou a acusação e defesa estará impedido de participar como julgador
do mesmo processo), o da inércia da jurisdição (que diz que os juízes somente
poderão agir mediante prévia provocação), o da titularidade da ação penal (que
concede com exclusividade ao ministério público o poder de acusar pessoas de
crimes) e, como pano de fundo a tudo isso, o do devido processo legal
substantivo (que garante que o exercício da defesa deve ser efetivo, não
meramente formal).
Nos
estudos acadêmicos de hermenêutica jurídica encontramos uma escola de
interpretação chamada por realismo jurídico, que dizia, sumariamente, que o
direito é apenas o que foi decidido pelo juiz e, por consequência, não há
direito nas leis, nos estudos científicos pertinentes à ciência jurídica nem
nos valores afirmados e reproduzidos pela sociedade humana. Não importa o
tamanho da barbaridade que se decida, sempre será chamado por direito aquilo
que afirmem os tribunais. Imagine então, para ilustrar, que um juiz tenha
declarado em uma sentença que uma parede de cor branca, na verdade é preta e
que essa decisão tenha transitado em julgado (ou seja, dela não seja mais
possível interpor nenhum recurso). A justiça formou uma verdade tecnicamente
irrefutável de que essa tal parede agora era negra, mas, de fato, alguém,
mirando o clarão radiante refletido pela luz vindo da parede ousará dizer que
ela não é branca?
São
dessa qualidade as armadilhas perigosas que as interpretações da suprema corte
brasileiro vem construindo ao longo já de várias décadas. E é por causa delas,
por exemplo, que se vem constrangendo a dizer que não era o que havia afirmado
pouco antes. Veja: depois de vários pronunciamentos no sentido de que Sérgio
Moro era o juiz natural para conhecer da acusação contra Lula (relativa a um
prédio localizado em São Paulo [sendo Moro juiz no Paraná] sem nenhuma relação
direta com qualquer obra ou outro contrato da Petrobrás [que por sua vez tem
sede no Rio de Janeiro]), teve que dizer o contrário, acrescentando ainda que
se tratava de juiz suspeito. Diga-se, teses já levantadas pela defesa desde
seus primeiros pronunciamentos no processo. E por aí vão as decisões
criacionistas do supremo tribunal brasileiro, tantas vezes tomadas em
contrafação a legados históricos e consolidados firmados através de décadas, às
vezes séculos de estudos jurídicos. Será mesmo que é assim que se deve construir
o direito? Desde a filosofia de Heidegger podemos afirmar que não existe
verdade sem uma tradição que a ampare e fundamente. E poderá haver direito,
então?
Para
muito além da questão pertinente à propriedade das famosas joias regaladas
pelos árabes ao ex-presidente; às tramoias dos cartões de vacina e até mesmo
aos atos preparatórios e executórios da tentativa de golpe, tudo entaramelado
na sórdida manipulação das mídias sociais através das fake news, há uma
questão ainda mais relevante, que diz respeito aos limites possíveis à
atividade jurisdicional na pós-modernidade, que no Brasil ganha cores
terrificantes. É preciso que vozes se levantem na sociedade; é necessário que a
academia nacional debate com seriedade o assunto, pois a pena que a história
cobrará pela omissão da sociedade será bem cara, se não já o está sendo.
Jorge Emicles