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domingo, 14 de abril de 2019


MEUS OITO ANOS



                   Por qual medida melhor se mensura a grandeza da existência? Somos cada um de nós universos maiores que o infinito; mais indevassáveis que o tempo e tão complexos quanto nosso Pai Criador; que os anos sempre serão pequenos em excesso para dimensionar a profundidade dos sentimentos que em nós habita no mais fundo dessa infinitude.
                   Não foram oito anos que se passaram. Foi uma vida inteira que se desenrolou nesse tempo. Melhor, foram infinidades delas, possibilidades abandonadas, oportunidades agarradas com destemor, feridas curadas, sonhos realizados. Desacertos também. Esses tanto de coisas não cabem em oito anos. Nem uma vida, nem dezenas delas seriam suficientes.
                   Quantas vezes se morre e revive durante uma existência? Recomeços, afinal, são partes inevitáveis do projeto do existir. Mas quantas vezes seria possível morrer e viver novamente, fisicamente falando? Não pergunte isso à ciência. Ela é totalmente desinformada nas questões relacionadas aos sentimentos; na matéria pertinente ao sentido e às razões da existência.
                   É desde o espaço que não se contabiliza em oito anos que se encontra aquele longínquo tempo que me separam das vidas pretéritas que já tive.
                   Às vezes, a ignomínia humana é tamanha, que a arrogância de se sentir importante; a ilusão de se achar prestigiado e o engodo de se considerar genial e super-humano fazem olvidar a essência das coisas; as razões dessa intricada viagem na matéria. Então, é preciso o sofrimento para a reconexão com a substância da existência.
                   No calendário, limitado instrumento humano de contagem, marcam exatos oito anos que me encontrava convalido em uma cama, inserido em um ambiente que não era o meu, me sentido completamente desconfortável, física, espiritual e psiquicamente.
                   Sozinho. Literalmente sozinho.
                   Era a fase final de um complexo processo médico de transplante de medula óssea. As defesas estavam totalmente inativadas. As funções do organismo funcionavam num índice bem próximo à falência completa. Todas as taxas orgânicas mensuráveis pela tecnologia médica estavam alteradas. Uma simples gripe me seria fatal.
                   Nesse estado se vivencia a sensação física da morte. Apesar do precário funcionamento orgânico, não existe mais consciência de pertencimento à matéria. As experiências são quase que totalmente espirituais. É exatamente assim o estágio inicial da morte. Aliás, foi ele próprio que vivi.
                   Era tudo ou nada. Ou o procedimento seria sucedido, e assim a nova medula implantada pegaria, segundo o linguajar médico, ou a falência definitiva seria inevitável. Era uma loteria, onde o grande prêmio, de remota probabilidade, seria a vida física. Necessariamente uma vida nova em todos os sentidos possíveis.
                   Para muitos é preciso morrer para se chegar à compreensão do verdadeiro valor que as coisas têm, assim como da desimportância que a maioria das outras possuem. Para mim, foi.
                   Deixar filhos desvalidos, projetos irrealizados, sonhos abandonados.
                   O que poderia salvar alguém em situação tão calamitosa? A medicina não possui a cura verdadeira, porque suas limitações não a permitem andar para além da química e da física. A vida é bem mais que esses processos. Se a causa verdadeira não for atacada, todo o ciclo da enfermidade se renovará, de sorte que a ciência no máximo conseguirá adiar a fatalidade.
                   Para a cura, é preciso nascer de novo. Mas para tanto, primeiro é inevitável morrer.
                   Mas a morte não é dorida. O sofrimento pode vir daquilo que atormente o espírito ou do que possa maltratar a carne. A morte em si é serena, pacífica e caridosa. Reparando bem na sua tez, mirando com destemor, é possível ver beleza e utilidade em sua presença. Ela não é má nem egoísta. É necessária.
                   Não são poucos os místicos que aprenderam a amar a morte.
                   Porém, mesmo diante dela, pedi pelo milagre da vida. Mas antes da colheita, andei pelo vale da morte, pois foi só assim que pude compreender a grandeza da vida. Sempre será preciso merecer para ter.
                   Depois dessa insólita experiência, para a qual palavras são quase inúteis, há exatos oito anos e muitas vidas, renasci. Como Lázaro, filho de um milagre. Discípulo da fé. Convicto da realidade espiritual. Ciente de que a verdadeira ilusão é esse mundo de matéria.
                   Mais que nunca, valorizante das coisas simples, pois é nelas que toda a essência se encontra.
                   Que faria um recém-nascido, conhecedor da notícia do êxito inicial do transplante, ciente da alta hospitalar para aquele dia? Se prostraria em oração? Voltaria ao aconchegante seio da família? Sairia em viagem pelo mundo? Um romance bem conduziria a qualquer desses destinos. Seria algo charmoso, próprio dos que tem elevo espiritual.
                   Eu não. Era um nascituro, quase. Queria sentir como era a vida na matéria. Fazia bom tempo que estava afastado dessa sensação. Fiz do irmão que veio me apanhar no hospital um cúmplice e fomos juntos comer e beber. Era preciso comemorar a vida! Encomendei uma garrafa de espumante e a sorvi sozinho, em bem pouco tempo, cada uma daquelas gotas borbulhantes.
                   Era mais que o inebriamento do álcool que sentia. Era a exata sensação do processo inverso da transição espírita. A passagem da morte, que em suma é quase nada além da ausência de matéria, para a existência na substância atômica. Médico nenhum poderia me prescrever droga mais eficaz que aquele líquido claro que expelia bolhas, de sabor doce e que me trouxe indescritível sensação de pertencimento ao mundo. Não adiantava a sofreguidão que me abalava a carne, era feliz.
                   Estava de volta, sabia. Havia ganhado a chance de uma outra vida. Não importava mais os desdobramentos futuros do tratamento. Dali para a frente todos os cuidados adicionais seriam inúteis. O milagre estava consumado.
                   Aquelas conversas com a morte estavam suspensas. Temporariamente, claro. Mas agora seria necessário entabular diálogos com a vida. De uma nova e miraculosa vida, fruto de um processo de transmigração. Porque se o corpo e o espírito aparentemente ainda eram os mesmos, a maneira de enxergar a existência estava completamente alterada. E tudo se modifica quando se imprime um novo modo de ser.
                   Aprendi a me recolocar diante da vida. A ressignificar as pequenas coisas, valorizando as experiências, dando importância aos bons amigos, desapegando do egoísmo, compreendendo aos poucos a verdadeira importância do viver.
                   O verdadeiro poder não está no dinheiro ou na capacidade de mandar nos outros. O Poder que se escreve com o “P” em maiúscula está no conhecimento. Não do conhecimento da ciência, que é e sempre será precário e provisório. Não nos esqueçamos que todos os postulados científicos são provisórios, afinal.
                   De lá para agora pude viver outras dezenas de vidas. Sou uma criança, ainda, mas cheia de vontade, plena de esperança, desejosa de aprender. Quanto mais me desapeguei das coisas do mundo, mais aprendi a compreender as suas belezas. Com Buda, percebo a razão do sofrimento; com Cristo a sabedoria do amor; com Salomão a necessidade da sabedoria.
                   Foi um longo processo de volta à matéria. Penoso, às vezes. Diferente de tantos, era muitas vezes difícil ter consciência da dureza do universo atômico. Em várias ocasiões me custou manter laços com o mundo do tempo-espaço. Conheci a mentira e a falta de caráter que certas pessoas conseguem guardar sob a máscara do amor. Mas também encontrei o perdão e a incondicionalidade do bem querer. Na verdade, nós humanos, somos de tudo capazes, das maiores traições às mais encantadoras renúncias. É nosso grau de espírito que direciona nossas ações. Por elas nos desvelamos inteiramente. Basta observar, que toda a verdade se revela num clarão.
                   Quantas vidas não vivi em oito anos... Mas todas elas vitoriosas, que valeram a pena dos sofrimentos; que fizeram regozijar pelas alegrias encontradas. Cada uma delas necessária ao meu pleno retorno à matéria.
                   Bem vindo ao mundo, digo eu a mim mesmo oito anos depois. Tudo valeu a pena. Sempre vale. Sempre valerá. Minha alma, então, não é nada pequena. Outra vez pertenço à fictícia realidade das expiações e sofrimentos. Mas pela primeira vez sou pleno. Me encontrei dentro de mim mesmo.
                   Sem medo digo, porque a vida me pôs no lugar de poder dizer: li-te-ral-men-te, a vida é um milagre!

Jorge Emicles

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