MEUS
OITO ANOS
Por
qual medida melhor se mensura a grandeza da existência? Somos cada um de nós
universos maiores que o infinito; mais indevassáveis que o tempo e tão
complexos quanto nosso Pai Criador; que os anos sempre serão pequenos em excesso
para dimensionar a profundidade dos sentimentos que em nós habita no mais fundo
dessa infinitude.
Não foram oito anos que se passaram. Foi uma vida
inteira que se desenrolou nesse tempo. Melhor, foram infinidades delas,
possibilidades abandonadas, oportunidades agarradas com destemor, feridas
curadas, sonhos realizados. Desacertos também. Esses tanto de coisas não cabem
em oito anos. Nem uma vida, nem dezenas delas seriam suficientes.
Quantas vezes se morre e revive durante uma
existência? Recomeços, afinal, são partes inevitáveis do projeto do existir.
Mas quantas vezes seria possível morrer e viver novamente, fisicamente falando?
Não pergunte isso à ciência. Ela é totalmente desinformada nas questões
relacionadas aos sentimentos; na matéria pertinente ao sentido e às razões da
existência.
É desde o espaço que não se contabiliza em oito
anos que se encontra aquele longínquo tempo que me separam das vidas pretéritas
que já tive.
Às vezes, a ignomínia humana é tamanha, que a
arrogância de se sentir importante; a ilusão de se achar prestigiado e o engodo
de se considerar genial e super-humano fazem olvidar a essência das coisas; as
razões dessa intricada viagem na matéria. Então, é preciso o sofrimento para a
reconexão com a substância da existência.
No calendário, limitado instrumento humano de
contagem, marcam exatos oito anos que me encontrava convalido em uma cama,
inserido em um ambiente que não era o meu, me sentido completamente desconfortável,
física, espiritual e psiquicamente.
Sozinho. Literalmente sozinho.
Era a fase final de um complexo processo médico de
transplante de medula óssea. As defesas estavam totalmente inativadas. As
funções do organismo funcionavam num índice bem próximo à falência completa.
Todas as taxas orgânicas mensuráveis pela tecnologia médica estavam alteradas.
Uma simples gripe me seria fatal.
Nesse estado se vivencia a sensação física da
morte. Apesar do precário funcionamento orgânico, não existe mais consciência
de pertencimento à matéria. As experiências são quase que totalmente
espirituais. É exatamente assim o estágio inicial da morte. Aliás, foi ele
próprio que vivi.
Era tudo ou nada. Ou o procedimento seria
sucedido, e assim a nova medula implantada pegaria, segundo o linguajar médico,
ou a falência definitiva seria inevitável. Era uma loteria, onde o grande
prêmio, de remota probabilidade, seria a vida física. Necessariamente uma vida
nova em todos os sentidos possíveis.
Para muitos é preciso morrer para se chegar à
compreensão do verdadeiro valor que as coisas têm, assim como da desimportância
que a maioria das outras possuem. Para mim, foi.
Deixar filhos desvalidos, projetos irrealizados,
sonhos abandonados.
O que poderia salvar alguém em situação tão
calamitosa? A medicina não possui a cura verdadeira, porque suas limitações não
a permitem andar para além da química e da física. A vida é bem mais que esses
processos. Se a causa verdadeira não for atacada, todo o ciclo da enfermidade
se renovará, de sorte que a ciência no máximo conseguirá adiar a fatalidade.
Para a cura, é preciso nascer de novo. Mas para
tanto, primeiro é inevitável morrer.
Mas a morte não é dorida. O sofrimento pode vir
daquilo que atormente o espírito ou do que possa maltratar a carne. A morte em
si é serena, pacífica e caridosa. Reparando bem na sua tez, mirando com
destemor, é possível ver beleza e utilidade em sua presença. Ela não é má nem
egoísta. É necessária.
Não são poucos os místicos que aprenderam a amar a
morte.
Porém, mesmo diante dela, pedi pelo milagre da
vida. Mas antes da colheita, andei pelo vale da morte, pois foi só assim que
pude compreender a grandeza da vida. Sempre será preciso merecer para ter.
Depois dessa insólita experiência, para a qual
palavras são quase inúteis, há exatos oito anos e muitas vidas, renasci. Como
Lázaro, filho de um milagre. Discípulo da fé. Convicto da realidade espiritual.
Ciente de que a verdadeira ilusão é esse mundo de matéria.
Mais que nunca, valorizante das coisas simples,
pois é nelas que toda a essência se encontra.
Que faria um recém-nascido, conhecedor da notícia
do êxito inicial do transplante, ciente da alta hospitalar para aquele dia? Se
prostraria em oração? Voltaria ao aconchegante seio da família? Sairia em
viagem pelo mundo? Um romance bem conduziria a qualquer desses destinos. Seria
algo charmoso, próprio dos que tem elevo espiritual.
Eu não. Era um nascituro, quase. Queria sentir
como era a vida na matéria. Fazia bom tempo que estava afastado dessa sensação.
Fiz do irmão que veio me apanhar no hospital um cúmplice e fomos juntos comer e
beber. Era preciso comemorar a vida! Encomendei uma garrafa de espumante e a
sorvi sozinho, em bem pouco tempo, cada uma daquelas gotas borbulhantes.
Era mais que o inebriamento do álcool que sentia.
Era a exata sensação do processo inverso da transição espírita. A passagem da
morte, que em suma é quase nada além da ausência de matéria, para a existência
na substância atômica. Médico nenhum poderia me prescrever droga mais eficaz
que aquele líquido claro que expelia bolhas, de sabor doce e que me trouxe
indescritível sensação de pertencimento ao mundo. Não adiantava a sofreguidão que
me abalava a carne, era feliz.
Estava de volta, sabia. Havia ganhado a chance de
uma outra vida. Não importava mais os desdobramentos futuros do tratamento.
Dali para a frente todos os cuidados adicionais seriam inúteis. O milagre
estava consumado.
Aquelas conversas
com a morte estavam suspensas. Temporariamente, claro. Mas agora seria
necessário entabular diálogos com a vida.
De uma nova e miraculosa vida, fruto de um processo de transmigração. Porque se
o corpo e o espírito aparentemente ainda eram os mesmos, a maneira de enxergar
a existência estava completamente alterada. E tudo se modifica quando se
imprime um novo modo de ser.
Aprendi a me recolocar diante da vida. A
ressignificar as pequenas coisas, valorizando as experiências, dando
importância aos bons amigos, desapegando do egoísmo, compreendendo aos poucos a
verdadeira importância do viver.
O verdadeiro poder não está no dinheiro ou na
capacidade de mandar nos outros. O Poder que se escreve com o “P” em maiúscula
está no conhecimento. Não do conhecimento da ciência, que é e sempre será
precário e provisório. Não nos esqueçamos que todos os postulados científicos
são provisórios, afinal.
De lá para agora pude viver outras dezenas de
vidas. Sou uma criança, ainda, mas cheia de vontade, plena de esperança,
desejosa de aprender. Quanto mais me desapeguei das coisas do mundo, mais
aprendi a compreender as suas belezas. Com Buda, percebo a razão do sofrimento;
com Cristo a sabedoria do amor; com Salomão a necessidade da sabedoria.
Foi um longo processo de volta à matéria. Penoso,
às vezes. Diferente de tantos, era muitas vezes difícil ter consciência da
dureza do universo atômico. Em várias ocasiões me custou manter laços com o
mundo do tempo-espaço. Conheci a mentira e a falta de caráter que certas
pessoas conseguem guardar sob a máscara do amor. Mas também encontrei o perdão
e a incondicionalidade do bem querer. Na verdade, nós humanos, somos de tudo
capazes, das maiores traições às mais encantadoras renúncias. É nosso grau de
espírito que direciona nossas ações. Por elas nos desvelamos inteiramente.
Basta observar, que toda a verdade se revela num clarão.
Quantas vidas não vivi em oito anos... Mas todas
elas vitoriosas, que valeram a pena dos sofrimentos; que fizeram regozijar
pelas alegrias encontradas. Cada uma delas necessária ao meu pleno retorno à
matéria.
Bem vindo ao mundo, digo eu a mim mesmo oito anos
depois. Tudo valeu a pena. Sempre vale. Sempre valerá. Minha alma, então, não é
nada pequena. Outra vez pertenço à fictícia realidade das expiações e sofrimentos.
Mas pela primeira vez sou pleno. Me encontrei dentro de mim mesmo.
Sem medo digo, porque a vida me pôs no lugar de
poder dizer: li-te-ral-men-te, a
vida é um milagre!
Jorge
Emicles
Lindo e inspirador!
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