DURMA-SE
COM UM BARULHE DESSES!
A primeira rodada de pesquisas, sondando os possíveis
resultados das eleições gerais no Brasil no presente ano saiu, deixando
importantes parcelas da sociedade nacional em polvorosa. O mercado sobressaltou-se,
principalmente em vista da incerteza que ressalta do cenário eleitoral. Lula
ganha folgado em todos os cenários possíveis, contra quaisquer das candidaturas
postas exceto, é claro, se for retirado da disputa conforme apontam todas as
previsões sérias. A verdade é que nem mesmo seu eleitor mais fiel e convicto
acredita mesmo que sua candidatura venha a ser deferida.
O caso é grave, afinal. O ex-Presidente se
encontra preso, em plena execução antecipada de pena por crime de corrupção, em
razão de haver recebido um já famoso apartamento triplex em troca de ajuda a empreiteiras junto à Petrobrás. Se Lula
é realmente o dono do dito apartamento; se há ou não provas contundentes
capazes de condená-lo pelo ato de corrupção; se é ou não constitucional a execução
antecipada de uma pena criminal mesmo em face de expressa disposição da
Constituição nacional no sentido de que presumem-se todos inocentes até o
trânsito em julgado da sentença condenatória são bem o cerne de todo o debate
em torno da figura do petista. Há opiniões para todos os gostos. O fato mesmo é
que, independente da prisão e da presunção constitucional de inocência, a lei
mesma proíbe expressamente a candidatura. A norma em questão, se trata da
chamada lei da ficha limpa, ironicamente
promulgada pelo próprio Lula quando era Presidente. Por essa lei, é inelegível
(não podendo concorrer a qualquer cargo eletivo) todo aquele condenado por um
órgão colegiado por crimes específicos (entre os quais estão os crimes contra a
administração pública, onde se inclui o de corrupção). A lei expressamente cria
a inelegibilidade mesmo antes do trânsito em julgado da decisão.
E isso é constitucional, segundo decisão do
Supremo Tribunal Federal, ditada no âmbito de uma ação direta de inconstitucionalidade. Na tosca linguagem jurídica é
uma verdade jurídica porque transitou em julgado, ou seja, não comporta mais
qualquer recurso.
O problema é que as verdades jurídicas podem não
ser tão verídicas assim. Reflitamos um pouco sobre esses fatos (jurídicos) à luz
dos valores do republicanismo e da democracia. Por diversão ou por despudor,
quiçá, construamos um silogismo inspirado nas lições do velho Aristóteles,
sempre lembrando que os silogismos aristotélicos podem revelar o que não é necessariamente
verdadeiro.
A república é o governo do povo. Do latim, res (coisa); publica (de todos). A coisa pública é de todos, ou melhor dito, do
povo. A soberania somente poderá ser exercida pelo povo, por ninguém mais. No
máximo, como é o caso da democracia indireta, será exercitada pelos
representantes do povo, mas sempre em seu nome. Os parlamentares nada mais são
senão meros representantes ou prepostos do povo soberano. “Todo o poder emana
do povo”, diz textualmente a Constituição brasileira em franca inspiração ao ideário
de Rousseau, ainda nos idos da Revolução Francesa de 1789. Ideia contrária é a
do regime monárquico, onde a soberania é exercida pelo rei (do latim, monarcha, governo de um).
Nas obras de Direito Constitucional é mais que
pacífica a compreensão de que a soberania popular será exercida principalmente
através do sufrágio. Sufrágio significa o instrumento de intervenção popular
nas deliberações do Estado. Esse direito é exercido através do voto, que no
Brasil será universal, direto e secreto. Para cada um desses adjetivos
atribuídos ao voto é possível localizar sua origem em algum ou vários
movimentos históricos de revolta popular. A principal referência a eles,
naturalmente, encontraremos na Revolução Francesa, onde os Estados Gerais
convocados pelo Rei Luís XVI se transformaram em uma Assembleia Constituinte,
fundadora da moderna República francesa.
Mas essas são outras histórias, que poderão melhor
seriam abordadas em futuros artigos. As ideias das quais pretendemos chamar a
atenção são as de que a soberania pertence nominalmente ao povo, que a exerce
através do sufrágio, direito que conduz ao exercício do voto. Insistimos que
esse ideário é perfeitamente compatível com qualquer pensamento moderno
desenvolvido por todos os constitucionalistas. Seria uma rara unanimidade
jurídica. Só não é uma verdade jurídica
porque não transitou em julgado (pasmem!). À luz do pensamento filosófico e
linguístico de Habermas, porém, é sim uma verdade, pois a verdade para esse
pensador é o fruto do consenso.
Sendo assim, e considerado o claro propósito do
povo (dono da soberania) em outorgar um mandato a Lula para ser o seu
representante na Presidência da República (que é coisa pública, a coisa do
povo), como justificar o impedimento a tanto estabelecido pelo Poder Judiciário,
quando vier a indeferir (em cumprimento à determinação legal) o pedido de
registro de candidatura do petista? Há nisso tudo uma pergunta que não quer nem
pode calar: nesse imbróglio todo, a quem representam os juízes? Segundo os
velhos revolucionários franceses, os juízes são os representantes da
aristocracia derrotada naquele movimento. Será?
O fato é que em todas as hipóteses possíveis, o
cenário eleitoral não refletirá a vontade soberana do povo, pois claramente o
candidato predileto do populacho não poderá ser votado (o sufrágio, dessa
maneira, não será soberano). Estará o dito candidato expressamente proibido de ter
lugar na urna eletrônica. Quiçá até mesmo lhe será vedado apresentar sua imagem
na propaganda eleitoral, o que sem dúvidas significará inequívoca censura, que
de seu turno negará vigência à outra expressa determinação da Constituição nacional
que proíbe a censura prévia (porque, dita o art. 5º, IX, da Carta da República
[esse é outro nome que dão à nossa Constituição Federal], que “é livre a
manifestação intelectual”, (...) independente de censura”).
Resultado? Não importa o resultado. Qualquer que
seja ele, estaremos diante de uma eleição ilegítima.
E durma-se com um barulho desses!
Jorge
Emicles