Páginas

quarta-feira, 30 de maio de 2018


POR UM NOVO PARADIGMA DE MUNDO



                   A crise das duas últimas semanas para muito além das suas diferentes causas possíveis e do conflito dialético patente entre os dois brasis que se entrechocam, se xingam mutuamente e possuem visões absolutas e completamente antagônicas da realidade, revela uma verdade mais óbvia, e talvez por isso mesmo menos perceptível por todos.
                   Como é fácil parar o Brasil! Basta que o sistema de transporte entre em colapso, seja por uma greve premeditada, seja por qualquer catástrofe natural ou mesmo provocada pelo homem. O mundo inteiro, na verdade, entraria em colapso em tais hipóteses. Não é uma questão exclusiva dos brasileiros, nem consequência direta da incompetência do governo. A falta de planejamento e inexistente visão de longo prazo da nossa sociedade até podem ter contribuído para o caos. Mas a verdade é que esse é um dos perigosos gargalos da globalização.
                   Neste mundão já sem fronteiras, onde a tecnologia das comunicações vence com aparente facilidade todas as barreiras da distância; onde os dois extremos do planeta podem se comunicar em tempo real, e por isso mesmo fazer negócios ao vivo; em que a cadeia de produção é fragmentada e por isso diversos itens de uma mesma coisa são fabricados em lugares distintos para serem montados em um terceiro lugar ainda mais distante que todos os demais; onde são as vantagens econômicas, medidas pelo baixo preço da mão-de-obra e pela redução da carga tributária de cada país que determinam o lugar e o modo de produção das riquezas; um mundo sem distâncias é ao mesmo tempo um mundo cada vez mais dependentes não exatamente dos caminhoneiros, mas na realidade, dos meios de transporte mecânicos e do aumento do consumo dos combustíveis fósseis. Em uma palavra: um mundo antiecológico
                   Dito assim, podemos com facilidade afirmar que o mundo contemporâneo é um mundo cego pelo lucro, fascinado pela virtualidade de um universo eletrônico, em que as coisas não são propriamente de verdade e cada vez menos comprometido com o equilíbrio ambiental e espiritual do planeta como um todo e de cada indivíduo isoladamente.
                   A greve dos caminhoneiros do Brasil, expõe a fragilidade do planeta inteiro, a ausência de verdadeiro compromisso ambiental da economia como um todo e da eminente possibilidade de breve rompimento do frágil equilíbrio não só ecológico, mas igualmente econômico e social em que todo o planeta está perigosamente envolvido.
                   Falar em conceitos como o de valorizar a produção e o consumo local, o da agrofloresta, do consumo racional dos recursos naturais e da necessidade geral de mudança dos paradigmas da economia mundial não é um simples discurso ecológico de uma classe de pessoas minoritária e isolada da modernidade do mundo. Não é conversa de quem pretende graciosamente renunciar aos pseudo confortos trazidos pela tecnologia, nem muito menos pretensão de recusa aos avanços da ciência. Mais que tudo isso, é uma contingência de sobrevivência da vida planetária e por conseguinte da possibilidade de a própria humanidade como um todo e cada indivíduo isoladamente, poderem continuar sua existência terrena.
                   É uma lástima que tenhamos de perder mais essa oportunidade para enxergarmos o verdadeiro problema a nossa volta, ao invés de nos distrairmos em debates inúteis a respeito de intervenção militar, ódio de classes e xingamentos baratos a um governo natimorto.

Jorge Emicles

sábado, 5 de maio de 2018


O ANO QUE NÃO TERMINOU




                   Fazem cinquenta anos que Paris estava em polvorosa. Um quase insipiente movimento de estudantes protestando pela reforma do ensino na França acabou se transformando na maior greve que o país de Rousseau já havia visto. A liberdade bradava mais uma vez seu grito, provisoriamente aprisionada pelos escuros muros da Bastilha. Em Praga já, a liberdade era encarcerada pelos tanques soviéticos que abafavam o movimento reformador do comunismo centralizador do pós-Stalin.
                   O mundo inteiro, naquele peculiar ano de 1968 respirava os brados do feminismo, da liberdade sexual recém conquistada por uma visionária geração de jovens nascida no pós-Segunda Grande Guerra e inspirada nos valores do pacifismo e supremacia da ética sobre o pragmatismo; expirava não apenas os preparativos para o festival de Woodstock que aconteceria no ano seguinte, mas na verdade toda uma novel visão de mundo. A promessa que faziam era a de que a civilização humana jamais seria a mesma após aquela geração chegar ao poder.
                   No Brasil, apesar do endurecimento da ditadura militar, os ventos da liberdade ainda assim conseguiram fazer farfalhar seu sopro por sobre as aspirações desse nosso míope povo. O MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro – em alusão à data do assassinato do Comandante Che) viveu seu ano mais aguerrido, de franco apoio à resistência armada contra a ditadura. Líderes estudantis foram presos arbitrariamente no famoso congresso clandestino da UNE, em Ibiúna. A renomada peça de Chico Buarque, Roda Viva era violentamente proibida pela censura oficial. Mesmo assim, ainda foi possível ouvirmos no festival Caetano Veloso, fora do tom e sem melodia cantar que “é proibido proibir”. Igualmente Geraldo Vandré não se calou antes de dizer das flores.
                   A colheita dessa corajosa semeadura foi o AI-5 (Ato Institucional nº 5), considerado o golpe dentro do golpe militar de 1964, pelo qual de uma vez por todas se enterraram quaisquer aspirações libertárias que se pudessem haver plantado. Em nome do combate à corrupção e da defesa da segurança nacional, se cassaram direitos políticos e aprisionaram tantos quantos ousaram se insurgir contra a verdade absoluta da ordem imposta. Tão intensos foram os acontecimentos desse ano, que o jornalista Zuenir Ventura imortalizou para ela a alcunha do ano que não terminou, título do seu mais famoso livro, onde narra em minúcias, com seu peculiar estilo literário, os insólitos acontecimentos daquele ano.
                   Aquela sobeja juventude apanhou no pau de arara, foi aprisionada e exilada, praticou sequestros de embaixadores em troca do resgate de seus companheiros presos, mas jamais se deixou calar. A roda do tempo trouxe seus principais personagens de volta à vida pública e ao poder mundano. Eles cumpriram em parte suas aspirações, pois se empoderaram do Estado, construíram discursos diferentes dos seus antecessores, mas não conseguiram concretizar a revolução do espírito que prometeram. A civilização continua humana, cheia de defeitos e utopias como já era antes deles.
                   Alguns dos presos de Ibiúna voltaram ao cárcere já septuagenários, acusados agora de corrupção. Outros seguiram suas carreiras artísticas, intelectuais e políticas sem maiores transtornos, sempre vivendo à sombra do personagem que foram nos anos de chumbo. Nenhum deles mudou o mundo pois o mundo, apesar de completamente diferente de dantes, se modifica por si mesmo. Poucos, transformaram a si mesmos.
                   Ah, quantos dos hippies adeptos do movimento de Woodstock não estão hoje em casa, assistindo às telenovelas da moda, passivos diante da vida, complacentemente e sem pressa “esperando a morte chegar”. Não há nada de novo sob o céu!

Jorge Emicles