A
FESTA DA DEMOCRACIA
O assunto é inevitável. Talvez até mesmo os índios
não contatados da densa floresta amazônica estejam comentando, entre uma
pescaria e outra caçada, o incongruente e, dizem, histórico julgamento do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) brasileiro, que fez de contas que não está
provado, comprovado, sendo irrecusável o fato de que a campanha presidencial de
2014 foi fartamente financiada por dinheiro sujo, proveniente da corrupção e
abastecido pelas maiores empresas do país. (A propósito, a questão vai bem além
da corrupção na Petrobrás e no financiamento oriundo de meia dúzia de empresas
delatoras. É generalizado pelo país inteiro). Esta evidência não atinge somente
a campanha da chapa vencedora, mas a de praticamente todos os concorrentes. Ou
pelo menos daqueles que em algum tempo tiveram chance real de vitória.
No mínimo, seria uma profunda hipocrisia presumir
que a roubalheira tenha tido início na derradeira campanha, pois não é possível
renunciar a evidente verdade de que assim sempre foi. Antes e depois do PT no
poder. Antes e depois da ditadura militar. A julgar pelo resultado da decisão,
contudo, parece que nossos juízes eleitorais não são tão amigos assim das
verdades lógicas, científicas e cartesianas necessariamente sacadas do amplo
conjunto probatório colhido no decorrer dos longos mais de dois anos que
transcorreram entre o ajuizamento e o nefasto julgamento das ações eleitorais
em questão.
Fez-se de contas que os fatos provados pelas novas
provas não se referiam à denúncia inicial de dinheiro de corrupção financiando
campanhas eleitorais, do uso da máquina pública em benefício de uns e prejuízo
de outros candidatos, tudo ao sabor das amizades palacianas. Em uma palavra, os
juízes continuam cegos, como historicamente sempre estiveram, aos flagrantes e
diferentes abusos praticados em todas as campanhas eleitorais, seja nas
pequenas, seja nas grandes cidades; seja nas eleições locais, regionais ou
nacional. Não importa, a regra é a prática do abuso de poder político,
econômico, de marketing, cultural e diversos outros. A prática é a omissão
generalizada de todas as autoridades eleitorais, afinal os pecantes não são
apenas os juízes eleitorais, é importante se dizer.
A experiência acumulada vida afora, fez com que
não me arrepiasse diante do absurdo da lógica abraçada pelos juízes do TSE,
afinal disparates muito piores já vi de outros juízes de todas as instâncias e
tribunais. A prática do foro ensina que as contas que costumam ser
rigorosamente fiscalizadas e impiedosamente reprovadas ante a mínima falha
técnica são as dos pequenos candidatos. Em regra, dos que não se abastecem dos
recursos da corrupção, ou pelo menos tem acesso a estes recursos em menor
volume. Porém, a reprovação de suas contas nunca é porque receberam verbas de
origem ilícita, mas em regra por questões técnicas absolutamente desimportantes
diante dos incessantes abusos praticados em todas as campanhas eleitorais,
diante dos quais a justiça eleitoral é seguidamente impotente ou cega.
O que de verdade existe nas campanhas é um
hipócrita faz de conta. Os candidatos e partidos fingem que foram escolhidos em
convenções democráticas, quando as instâncias partidárias são feudos dominados
com mãos de ferro pelos caciques de plantão, controlando e tolhendo a possibilidade
de escolhas livres e inovadoras. Em seguida os candidatos escolhidos em
convenção fingem que se entregam a firmes campanhas pautadas por programas,
projetos de governo e ideias diferentes, capazes de mudar completamente a
realidade dos eleitores desassistidos, quando tudo não passa de um arquitetado
e caro jogo de marketing. Não são ideias que se apresentam, mas produtos que se
vendem ao tolo eleitor, refém de escolher, ao final, a embalagem que lhe
pareceu mais bonita. Tudo isso, custeado por dinheiros ilícitos e em volume
imensamente maiores que os declarados nas prestações de contas eleitorais.
Aquela contabilidade pública apresentada mensalmente no site da justiça
eleitoral, dando cabo de todos os recursos gastos campanha por campanha,
candidato por candidato, são um ignóbil faz de conta, que não reflete nem de
longe os verdadeiros gastos de uma campanha, nem as verdadeiras fontes dos
recursos. Os romances de Garcia Marques certamente são mais realistas que as
prestações de contas eleitorais. Afinal, haverá mesmo algum brasileiro que
acredite que a campanha municipal de 2016 realmente não recebeu qualquer
financiamento empresarial, conforme manda a lei? Ah, claro, sempre teremos
juízes, promotores e técnicos eleitorais para acreditarem naquelas basbaquices!
E, ao termo de tudo, somos todos convidados
alegremente pela propaganda da justiça eleitoral a tomar parte na festa da
democracia. Afinal de contas, nos ensinam, a responsabilidade pela honestidade e
competência dos nossos políticos é exclusivamente nossa, uma vez que são nossos
honrados votos que os elevam aos mais altos cargos da república. Essa
propaganda na verdade me põe a refletir que, ao cabo, haverá sim de existir maiores
cegos que os juízes do TSE, que somos nós mesmos, eleitores, que periodicamente
repetimos pelo ritual do sufrágio o processo de legitimação dos néscios no
poder.
E vivas à democracia, porque ano que vem teremos
tudo novamente!
Jorge
Emicles