FUTUROS
PARALELOS
Aconteceu naquele dia, como poderia ter acontecido
em qualquer dia pretérito ou futuro de sua existência. Mas foi naquele momento
preciso que as condições cósmicas e pessoais se conjugaram fazendo surgir em
sua frente, de desopino, sem qualquer aviso prévio, sem nenhum sinal de que
seria naquele instante. Simplesmente, diante de si surgiu a encruzilhada
quântica de dois futuros paralelos e antagônicos entre si.
De um lado a vida mansa e certa, perene de um
cotidiano que de tão repetitivo pareceria uma verdadeira eternidade. Acordar
cedo, com o sol ainda escondido pela antecedência da aurora, já iminente,
correr à padaria, comprar quitutes, voltar para casa, preparar o café da manhã,
iniciar o trabalho já mecânico pela repetição, parar para o almoço, dormir a
rápida sesta, seguir para novo expediente de trabalho, retornar à casa, tomar o
merecido banho, cear a merecida refeição e gozar do merecido descanso até a
hora pontual da chegada do sono, para mais uma serena e brilhante noite de regozijados
sonhos, para tudo exatamente igual repetir por anos e décadas seguidos, até que
a justa e bondosa morte o alcançasse em sua já cansada monotonia. Aquele futuro
seria apaziguante, calmo, sem desacertos e imprevistos, regalado por uma bela
mulher e carinhosos filhos que o acompanhariam até a última hora, chorosos e
firmemente segurando suas mãos, quando diriam que, mesmo pesadas as saudades,
tudo teria valido à pena pela simples graça de tê-lo acompanhado na existência.
Uma vida perfeita, apesar de passada no âmago das incertezas da matéria.
De outro lado um turbilhão de experiências e
aprendizados, uma busca quase insana à procura do sentido da vida, da razão das
coisas e dos motivos da existência. Uma nova vivência a cada instante de
existência, a cumulação de conhecimentos e da matéria à cata do conteúdo último
de todos os saberes, na esperança, na maioria das vezes tênue, de que tal saber
seria a chave da verdadeira felicidade. Busca de tal quilate, verificou, não
era para muitos, pois como tudo na vida há um preço para a ciência das coisas.
O sofrimento, a dor, a incompreensão e por fim a solidão seriam o valor
cobrado. Verificou o quanto é dorido buscar a verdade e que este caminho
necessariamente conduz à injustiça e à incompreensão. Compreender que no mundo
da matéria não há jamais estabilidade, que esta é uma pueril ilusão alimentada
pelos tolos e que leva ao sentimento de solidão com relação ao mundo, que na
verdade significa uma consciência do estado de solitude em que vivem todos os
humanos. Ao termo dessa existência estaria sozinho, isolado e mal avaliado por
seus pares, porém seria um sábio. Como seria cônscio de sua posição ante as
coisas do mundo visível e invisível, na hora final de sua existência não se
auto apiedaria nem alimentaria qualquer sentimento de arrependimento. A solidão
mesma que se lhe apresentaria seria também relativa e ilusória pois se
auspiciaria do auxílio de invisíveis mestres. Não teria, porém, em sua
companhia aquela terna mulher e aqueles adorados filhos e por isso precisamente
sua memória seria legada ao infinito esquecimento.
Sabia que teria pouco tempo para avaliar e
escolher por quais dos portais iria enveredar, assim como que a decisão haveria
de ser irretratável. Não mais teria aquela oportunidade na existência. Logo,
apesar de apressada, sua decisão deveria ser muito bem pesada e medida. A
estabilidade do primeiro futuro lhe agradava, porque é para livrar-nos dos
sofrimentos que vivemos; é para o mesmo propósito que acumulamos ao longo da
existência as experiências. O que elas em última instância nos instruem é para
buscarmos sempre o caminho melhor pavimentado, mais largo, iluminado e reto,
pois são nas íngremes curvas da caminhada; nas pedras que se espalham por seu
percurso e nos descaminhos e obscuridades que aparecem onde encontramos o
sofrimento. Gozar sem dores as excelências da existência significa uma vida
perfeita e feliz.
A consciência das coisas é que produz a
infelicidade. Compreender as injustiças do mundo, as dores que alimentam a
alma, as limitações tanto da matéria quanto do caráter humano é a principal
fonte da infelicidade. Saber que existe a fome, que há a enfermidade e que a
fortuna de poucos é construída desde a sofreguidão de muitos extirpa qualquer
esperança de um mundo harmonioso e feliz. Não basta construir a felicidade
própria, egoísta, privada. O destino de uma alma deverá ser compartilhado por
todos e a única forma de reparar esta ausência de equidade é através do
conhecimento, pois é ele que adequadamente informa a respeito de o que há a reparar
e do que se precisa construir.
A felicidade deve ser um sentimento coletivo, para
ser plena e verdadeira. Tudo o mais é egoísmo ilusório e vão.
Mas na hora derradeira, caso viesse a enveredar
pelo futuro da sabedoria, seria triste, fria e longa. Não teria aquele apalpar
na sua mão, firme e amoroso; não existiria as lágrimas de saudades nem uma
descendência a lhe homenagear a memória; não haveria o calor do amor fraterno e
incondicional dos amigos. E isso, nas horas de desprazer da existência é mais
valioso que a pedra filosofal ou o elixir da longa vida, busca perpétua de
todos os sábios alquimistas de agora e de alhures. Uma felicidade privada,
ensimesmada ou uma consciência solitária, triste e desiludida de que se é
impotente diante da grandeza do Universo...
Se enveredasse pelo futuro de paz e regozijo, no
tempo da doença que lhe encerraria a existência, além do afeto familiar, seria
regado pela atenção de complacentes médicos, a alimentar sua esperança na cura
e na longevidade. Se escolhesse o futuro da sabedoria, não teria fé nos
médicos, pois seus conhecimentos o informariam do quanto é relativo seus
saberes; que a doença é antes de tudo o reflexo do estado da alma, que
interagindo com a matéria compromete os órgãos e sistemas do corpo humano; que
cada pessoa sofre de uma doença única e exclusiva, proveniente de fontes
imateriais; que os remédios zelosamente administrados pelos médicos mais
comprometem que ajudam na cura do doente; que a verdadeira cura é a espiritual.
Mas de que valeria tanto conhecimento, se diante do desânimo da enfermidade a
única coisa que se pretende de verdade é alimentar a esperança na tecnologia
clínica e a fé na Onipotência Divina?
Lhe pareceu que talvez a busca verdadeira da
humanidade não seja pela sabedoria, pelo conhecimento efetivo das coisas; mas a
da esperança de realizar o que racionalmente seria impossível. O homem médio,
diante da mesma encruzilhada, sem dúvidas preferiria o caminho da ilusão,
porque mesmo que relativo e falacioso, o sentimento de paz, felicidade e
completude que alimentaria na vida de regozijos seria tão realístico quanto se
de fato fosse completo e realista. Não se importaria em se estar enganado, mas
na fé que alimentaria na força da ilusão. Para ele, contudo, a consciência de o
quanto poderia aprender da verdade; crescer em si mesmo e a simples alegria que
sentiria em contemplar a verdadeira face do Universo e seu Criador seria
suficiente recompensa para as dificuldades que a procura lhe impingiria. Mas
seguia preso em sua consciência a revelação de que o segundo caminho o privaria
do aperto de mão e das lágrimas amorosa dos que, mesmo antes de conhecer, já
sentia tanto bem.
Não seria possível um caminho do meio; uma
terceira via, que conciliasse a busca da sabedoria com o amor da família.
Àquilo não teria direito. Haviam apenas dois caminhos possíveis e o tempo da reflexão
já se tinha esgotado. Era preciso dar o passo seguinte, de imediato.
Deu um suspiro, cerrou os olhos. Em sua mente
ultimou as derradeiras reflexões e inconcebivelmente decidiu que um futuro
certo, inequívoco, inevitável e sabido de antemão não lhe aprazaria jamais,
fosse ele um futuro de prazeres e paz com os outros, consigo mesmo e com todo o
Universo; fosse ele frenético, de grandes conquistas e inconvenientes preços,
mesmo que lhe revelasse a misteriosa verdade pretendida por todas as gerações
humanas que o precederam. A graça e o sentido da vida está exatamente na
incerteza do porvir, na possibilidade do fracasso e na esperança do sucesso.
Não importa propriamente as coisas que venham a ser conquistadas pela luta do
cotidiano, porque o verdadeiro valor se encontra na humana e tênue pretensão da
incerta conquista. A incerteza, em si, é o valor da vitória. Então, para que
enveredar seja por um caminho, seja pelo outro, se em ambos já estariam
pré-determinadas as veredas e conquistas que alcançaria?
Logo, não era por nenhum dos caminhos que
trilharia. Diante da inarredável certeza do que lhe ocorreria no futuro, a
atitude mais digna que poderia ter seria preferir a morte imediata.
Jorge Emicles Pinheiro Paes
Barreto.