Páginas

quinta-feira, 25 de abril de 2013


SOBRE MÉDICOS E MONSTROS



                            Causou espanto o caso da médica paranaense Virgínia Soares, tornado público em fevereiro de 2013, acusada formalmente pelo Estado de haver cometido dezenas de homicídios na UTI de um hospital local em que era a chefe. Tudo, fruto de denúncia partida de seus próprios subordinados, que antes de indignados, estavam revoltados pela falta de trato com o pessoal técnico que lhe auxiliava na matança controlada. A teor do que se apurou na imprensa, com o conhecimento da direção do nosocômio, a médica elegia entre os pacientes da UTI aqueles que deveriam morrer, seja mediante a inserção de medicamentos específicos capazes de paralisar funções vitais do corpo, seja pelo simples desligamento de aparelhos necessários à manutenção artificial destas funções. Os motivos para as mortes não se relacionavam exatamente ao grau de sofrimento a que estavam submetidos os pacientes (elemento típico para a caracterização do chamado homicídio piedoso), mas na verdade à disposição que os planos de saúde dos mesmos teriam em custear os caríssimos procedimentos decorrentes da internação. Controversamente, os pacientes do Sistema Único de Saúde tinham mais chances de escapar da triagem que os dos planos de saúde, porque a fiscalização e controle do governo é sabidamente muito menos rigorosa que o das empresas privadas de saúde. A lógica de tudo o que se fazia era de extrema simplicidade mercantil: quanto maior a rotatividade dos pacientes, maior o lucro para o hospital, especialmente quando se tratava de pacientes considerados em estado terminal, cujo custo de permanência seria sistematicamente questionado pelos planos de saúde patrocinadores dos mesmos. Matá-los seria a forma mais simples, barata e higiênica de livrar a todos do gravíssimo problema referente à fonte de custeio dos seus respectivos tratamentos.
                            Para a história oficial, este será registrado como um caso especialíssimo em que uma doente mental assumiu a gloriosa arte médica, enaltecendo o cuidado que a academia deverá redobrar durante a formação de seus neófitos. Não se levantará jamais (porque inglória e contrária aos interesses econômicos das corporações hospitalares, médicas e farmacêuticas) a impensável hipótese de que os mesmos problemas que foram verificados no Hospital Evangélico (dos mais ricos e conceituados de Curitiba) talvez também se replicassem em outros, sejam grandes, sejam pequenos; sejam localizados nas ricas e desenvolvidas regiões do país (como foi o caso denunciado), sejam nos miseráveis rincões que ainda hoje emprenham este país e tantos outros mundo afora. Com um pouco de curiosidade, não seria tão impensável assim imaginar que o sistema se replica em todos os recantos, reproduzindo sempre seus modelos básicos. Seja no miserável terceiro mundo, seja na opulente América dos ricos ou mesmo na Europa. Para o buscador legítimo, contudo, esta pergunta não poderá sair da memória, como um mantra repetindo alguma verdade que não se pretende revelar facilmente, senão pela insistência dos ranzinzas: os interesses econômicos dos planos de saúde, que no afã de livrar-se de despesas de alto custo dificultam o quanto podem sua ministração a seus clientes (que a eles, infelizmente, somente recorrem nos instantes de maior agonia e sofrimento) não estaria presente em todo o país, e não seria o mesmo comum a todos os internos de todas as UTI’s, de todos os hospitais, não sendo assim exclusivos do Hospital Evangélico de Curitiba?  Os hospitais em geral, todos os privados pelo menos, e não somente o Hospital Evangélico de Curitiba, não seriam empresas privadas, movidas pela ganância do lucro? Os médicos, todos eles e não somente a Virgínia Soares, não seriam empregados servis ou mesmo sócios destas empresas hospitalares, e nesta condição não estariam sujeitos às mesmas pressões que os médicos do Hospital Evangélico de Curitiba, exercidas pelas empresas hospitalares, pelos planos de saúde privada e pela indústria farmacêutica?
                            Karl Marx, do alto de sua teoria econômica, que lia a sociedade genericamente a partir das relações econômicas que povoam os diversos vínculos existentes no âmbito da sociedade, certamente sacaria a mais valia como a pedra fundamental para o entendimento do específico caso do Hospital Evangélico de Curitiba, por meio do que não duvidaria que no âmago daquela malfazeja UTI sobrepunha-se, acima de todos os valores éticos, a fome pelo lucro, a necessidade de manter o emprego e o status social e as próprias relações de trabalho, sendo estes suficientes combustíveis para a realização da noticiada matança branca (e por isto discreta, aparentemente indolor e devidamente maquiada de morte natural). Se é verdade que a tal teoria econômica do velho Marx restou desgastada ao longo do tempo, pois não encontra lugar em seu bojo para o homem enquanto individualidade e para a afirmação de valores fundamentais para a sociedade moderna, como são as diversas espécies de liberdades e mesmo a democracia enquanto pedra fundamental da própria sociedade, o que ao final torna tênue as evidências por ele apresentadas; igualmente é verdadeiro que as imperfeições da sua teoria não desnodam em nada a verdade inquebrantável de que as relações sociais se constroem desde os movimentos (às vezes sutis, outras excessivamente barulhentos) da dialética, por meio dos quais distintos seguimentos da sociedade (e no âmbito mais reduzido, dos indivíduos propriamente) lutam pela sobrevalência de antagônicos interesses, sagrando-se vencedores em regra os economicamente mais poderosos. Nesta perspectiva, parece-nos então possível uma visão marxista do caso do Hospital Evangélico, por intermédio da qual se verificará o digladiar das forças dialéticas antagônicas, representadas aqui na figura fragilizada e inconsciente dos pacientes lutando pela vida, ao mesmo tempo que contra os interesses econômicos dos planos de saúde e da própria indústria materializada no hospital mesmo, luta que teria na figura do médico um trabalhador a serviço de específicos interesses econômicos (quando não for ele mesmo o capitalista), onde a hipossuficiência do doente fosse um fator apenas a facilitar o ignóbil procedimento de seleção de quem deve viver ou morrer. Não se trata na espécie de uma seleção da natureza, que tantas vezes possibilita o refúgio e a fuga, por meio do qual em muitas hipóteses garante a sobrevivência do mais fraco, mas de uma seleção social, dos interesses econômicos das grandes indústrias e dos homens sorrateiramente escondidos por detrás delas.
                            A inserção de elementos econômicos no âmago das práticas médicas pareceriam desrespeitosas e antagônicas mesmo à vida e ao inspirador juramento de Hipócrates, reconhecido pai da medicina. A veia lucrativa da tal arte médica, realmente parece mesmo não combinar com a visão naturalista e pouco intervencionista ensinada por seu fundador, para quem a medicina se pratica a partir de quatro fundamentais princípios, os quais seriam jamais prejudicar o enfermo, não prometer milagres, lutar contra a causa da enfermidade e acreditar no poder de cura da própria natureza. Conhecer, mesmo que superficialmente, a realidade dos hospitais e dos tratamentos ali desenvolvidos talvez nos convença da amnésia dos modernos médicos quanto a tais princípios. As práticas dos médicos por si mesmas revelam o quanto estão hoje distantes do ideal firmado pelo instituidor de sua arte. Basta ver o grau de intervenção face ao corpo humano com que realizam seus procedimentos, a forma desrespeitosa com que enfrentam a fragilização e até em certas hipóteses a aniquilação da dignidade humana do paciente e os efeitos colaterais nefastos e às vezes desnecessários dos medicamentos ministrados, para que se verifique a que grau são olvidados os princípios éticos de Hipócrates (talvez até seja hipócrita falar-se dos tais princípios).
                            Contudo, a própria vida de Hipócrates revela práticas ainda hoje enaltecidas pelos médicos contemporâneos, notadamente a origem iniciática, elitista e seletiva de suas práticas. Na origem, como se deu com o próprio pai da medicina, a sua arte era transmitida reservadamente apenas aos que fossem escolhidos, numa verdadeira tradição iniciática (ele mesmo aprendeu seus conhecimentos básicos do pai, que por sua vez os recebeu da ascendência, cuja origem remonta a longa linha genealógica). Os médicos não atendiam genericamente aos que necessitassem, mas apenas aos membros de específicas castas sociais, excluindo, de regra, a grande massa da população de seus cuidados. Platão, contemporâneo do próprio Hipócrates, em Leis, traz relevantes ensinamentos a despeito dos médicos de seu tempo, quando compara o médico dos cidadãos livres ao médico de escravos. Os médicos dos cidadãos livres eram antes mesmo filósofos, necessariamente membros de alguma escola iniciática (cuja mais famosa delas é exatamente a de Cós, ilha grega de onde provinha o próprio Hipócrates) e por isto muito ciosos de seus conhecimentos e responsabilidades. Representavam o melhor que o conhecimento grego poderia absorver sobre a medicina, enquanto os médicos de escravos eram simples práticos, sem qualquer formação suplementar. Para Platão, aqui interpretado por Werner Jaeger (que transcreve, em itálico, passagem original da obra de Platão), assim divergiam as práticas dos médicos livres de cidadãos livres (os cidadãos livres eram a casta superior e minoritária da sociedade grega) e dos médicos de escravos:
Os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão as suas instruções sem falar, isto é, sem se demorarem a fundamentar os seus atos, com base na simples rotina e na experiência. Esse médico é um tirano brutal. Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se à natureza de todos os corpos, morreria certamente de rir e diria o que a maioria das pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: o que fazes, néscio não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse devolver-lhes a saúde, mas fazer deles médicos. Platão, por seu lado, vê nesta Paidéia médica, baseada num esclarecimento a fundo do doente, o ideal da terapêutica científica. É uma concepção que ele tomou da Medicina do seu tempo.[1]
                            Este paralelo entre os médicos de escravos e de cidadãos livres parece-nos uma ótima gênese das contemporâneas práticas da medicina: enquanto as pessoas abastadas (que na sociedade grega necessariamente seriam os cidadãos livres) tem acesso a uma medicina privada, por isto extremamente cara e elitista por esta mesma razão, onde os médicos lhes informam da maneira mais conveniente possível sobre o seu estado de saúde, além de oportunizá-los acesso aos mais modernos e eficazes métodos terapêuticos; aos que não dispõe de condição financeira suficiente para ingressar neste estrito círculo (na sociedade grega os escravos ou simplesmente a casta social que não gozava da cidadania), resta o sistema público de saúde, onde os médicos não dedicam nenhuma atenção e pouquíssimo tempo aos pacientes, não prestando nem esclarecimento nem oportunizando acesso aos mais adequados tratamentos. Neste segundo grupo encontram-se não apenas os paupérrimos, que pela precariedade da sua condição financeira não dispõem de qualquer recurso para custear um plano de saúde, mas também os remediados, que seriam aqueles que a muito custo conseguem pagar um plano de saúde de qualidade mediana. A estes últimos também se recusa acesso à medicina dos cidadãos livres (insistimos na repetição principalmente pela ênfase de destacar a liberdade, no que pese a patente contradição de se falar em cidadãos livres, posto que a liberdade é condição mesma da cidadania). Por sinal, foram exatamente eles (os remediados, os livres só nominalmente, mas presos irrecorrivelmente às amarras da falta de acesso pela ausência de recursos financeiros – tal qual os gregos livres da escravidão mas carecedores da cidadania) as maiores vítimas da médica Virgínia Soares, conforme divulgado amplamente na imprensa nacional.
                            Também é outro legado da antiga Grécia a noção da palavra diaita, traduzida para o vernáculo por dieta, que para muito além de representar uma prescrição alimentar específica, significa uma atitude voltada para os pensamentos e os hábitos em geral. Hipócrates mesmo, quando prescrevia suas dietas enquanto um dos mecanismos de intervenção contra a enfermidade que acometia o doente, o fazia neste específico propósito, portanto, prescrevia hábitos e posturas diante da vida e de seus problemas, não apenas alimentos determinados em horas e quantidades determinadas (como hoje fazem os médicos, especialmente durante as internações hospitalares). A prática da dieta ideal, porém, igualmente era acessível exclusivamente aos cidadãos livres, posto que suas prescrições pressupunham o ócio e o acesso a específica alimentação. Notadamente na necessidade de tempo livre, disponível exclusivamente aos cidadãos é que se verifica a elitização, também pela dieta, das práticas médicas, isto já desde a antiguidade clássica. Na literatura grega existe uma importante obra, cuja autoria ainda é desconhecida, chamada Da Dieta, que consistia em um tratado cuja pretensão era detalhar as práticas físicas e alimentares ideais necessárias para uma vida saudável. Mais adiante, surge a obra do médico Díocles, que pode ser entendida como o aperfeiçoamento desta prática. Werner Jaeger (que para nós traz uma profunda e coerente visão do mundo grego, que ele mesmo chama de Paidéia – termo que poderia ser traduzido livremente como um sistema educativo) sobre a dieta de Díocles, a descreve afirmando que ela começa logo com o despertar, que deverá ser junto com o nascer do sol, pois era necessário seguir os ritmos da natureza (na visão de mundo grega, o homem e a sociedade não estavam destacadas da natureza, como se pensa modernamente, mas era uma e outra necessariamente parte do mesmo todo).  Não convém levantar-se logo depois do despertar, devendo-se aguardar a dissipação da lessidão do sono, quando se deverá massagear a cabeça e o pescoço, especialmente nos lugares que estiveram expostos à pressão da almofada. Antes de defecar, deve-se esfregar o corpo inteiro com uma mistura de azeite e água no verão e somente azeite no inverno. Tal fricção (para nós uma massagem) serviria para ativar todas as articulações. Não se deve tomar banho logo pela manhã, sendo suficiente lavar-se o rosto e os olhos com água fria e límpida, lavando previamente as mãos. Após adotar-se cuidados específicos com os dentes, nariz, ouvidos, cabelos e couro cabeludo, vem o desjejum, depois do qual se deverá dar um passeio, cujo caráter e duração variará conforme as forças, compleição e idade da pessoa, não devendo ser nem muito demorado nem muito rápido. Até o início dos exercícios físicos matinais, reserva-se então algum tempo para os afazeres domésticos. Os exercícios propriamente serão realizados no ginásio, para os que forem jovens e saudáveis e nos banhos para os enfermos ou idosos. Nos banhos, as pessoas deverão ser friccionadas. Já o número e a intensidade dos exercícios variará conforme a idade e robustez do indivíduo. Tratando-se de idoso, bastará que lhe esfreguem lentamente e lhe façam um pouco de movimento. Depois dos exercícios matinais, será a hora do banho, após o qual segue o almoço, que deverá ser leve e não flácido, para que possa ser digerido antes da ginástica da tarde. Para depois do almoço, está indicado uma leve sesta em local escuro e arejado, mas sem corrente de vento. Em seguida mais alguns trabalhos caseiros e um passeio, que depois de breve repouso deverá seguir-se dos exercícios da segunda parte do dia. Encerado os exercícios, vem a refeição principal, que deverá acontecer antes do por do sol no verão e logo depois do ocaso no inverno. Após ela, prescreve-se dormir para tudo recomeçar no dia seguinte.
                            Não se duvida, mesmo diante de todo o conhecimento supostamente acumulado pela moderna medicina, da sensatez e coerência da prática da dieta de Díocles, muito notadamente na parte em que intui que a menor intervenção do médico (especialmente na prescrição de medicamentos) e maior participação do paciente no restabelecimento ou manutenção de sua própria saúde serão sempre as melhores recomendações. E a ausência de espanto não se deve apenas por tratar-se de um grego, mas, sobretudo, de um discípulo do próprio Hipócrates, pois a sua Paidéia da medicina funda-se notadamente na menor intervenção possível. Mesmo com tamanha convicção, no entanto, será impossível não dizer que a dieta do sábio Díocles não poderá ser praticada por aqueles que vendem ao capital sua força de trabalho, seja em que classe for, pois tanto fará tratar-se de um profissional liberal, alto executivo ou trabalhador assalariado, nenhum deles disporá sequer da terça parte de tempo necessária à prática da tal dieta. Assim, somente poderá cuidar adequadamente da saúde os que gozarem do ócio (produtivo, de preferência), tal qual era com o cidadão grego contemporâneo e seguidor da dieta que aqui chamamos por diocleana. Tanto que o próprio Jaeger conclui que “nenhum dos grandes tipos profissionais do nosso tempo, nem o comerciante nem o político, nem o cientista, o operário ou o camponês se enquadraria no âmbito deste estilo de vida da Grécia”[2]. Para nós, tal estilo reserva-se apenas modernamente ao grande burguês, porque nem à aristocracia se permite mais a inatividade profissional, como foi durante toda a idade média. Pois que é para este, o grande detentor do grande capital, que estará reservada a preferência nos índices de longevidade da moderna expectativa de vida (hoje já octagenária).
                            Em geral se dissemina a ideia de que a medicina evoluiu de uma dimensão generalista e coletiva praticada na idade antiga e média, para uma outra individualizada na modernidade, em que se ressalta o tratamento específico e individual para cada paciente, criando assim a famosa relação médico-paciente, tão fundamental na pseudo humanização da medicina. As revelações transcritas nos parágrafos anteriores, no entanto, nos parecem suficientemente robustas para indicar exatamente o movimento contrário, ou seja, que a medicina da antiguidade e medieva era individualista, notadamente porque voltada para uma casta apenas da sociedade, por meio da qual aos eleitos se possibilitava uma dieta ideal, que seria fruto direto do sumo do melhor conhecimento adquirido até então, enquanto que a medicina moderna é que é coletivizada e generalista, fiel seguidora de protocolos rígidos e tratamentos uniformes, os quais desmerecem as qualidades e nuances intrínsecas à individualidade. O surgimento do hospital mesmo (diremos um pouco mais adiante, a posse do ambiente hospitalar pelos médicos) é importante fase nesta coletivização da medicina. Foucault já alertava para a necessidade da posse imediata do corpo físico enquanto inarredável elemento de dominação. É dizer: o sistema ideológico do capitalismo moderno pressupõe que o Estado disponha de diversos mecanismos de controle direto do homem não somente no sentido ideológico do discurso, mas igualmente físico de seu próprio corpo. Tal controle se exerce de um lado pelo sistema repressivo deste Estado, notadamente pelos presídios e pelas penas, mas também pelo controle sanitário, que pressupõe a proteção da classe dominante contra as epidemias em geral, e da proliferação de doenças em especial, controle que vem a ser exercido exatamente pelos médicos e seus hospitais. Aliás, foi exatamente esta necessidade que levou ao domínio do ambiente hospitalar pelos médicos, ao contrário do que era na sua origem. Nas palavras do próprio Foucault, temos que
com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopólítica. A medicina é uma estratégia biopolítica.[3]
                            Em outras palavras diríamos que a partir da revolução industrial, quando a força bruta proletária, que antes de ser proletária era a massa ignorante, desqualificada e descartável dos servos, passou a necessitar de alguns conhecimentos especializados para operar as novas máquinas, o que transformou-os em algo mais que simples e substituíveis corpos proletários, eles em si mesmo passaram a ser alguma espécie de capital, representada não somente pela força bruta de seu trabalho, mas também pelo conhecimento apreendido, tendo que ser de alguma forma segurados. Foi desta realidade, não por razões humanistas, portanto, que nasceu o fenômeno identificado por Foucault como a socialização, ou massificação da medicina. Proteger minimamente a saúde do proletariado tinha uma tríplice função, então: assegurar a mais eficiente prática dos conhecimentos necessários ao funcionamento da máquina; garantir uma economia primária, consistente na lógica de que quanto mais tempo aquele trabalhador produzisse (para o que necessitaria de razoável saúde), maior seria a mais valia do sistema; além da segurança sanitária para a alta sociedade burguesa de que estaria protegida de epidemias e outras doenças facilmente multiplicáveis nos bolsões de miséria existentes nos grandes centros urbanos da época. Não é demais lembrar que com o fenômeno industrial o problema das epidemias se agrava a partir da necessidade social nascente de grandes aglomerados humanos nos centros industriais. É desde aí que nasce a moderna metrópole.
                            Este sistema é notadamente verificado na Inglaterra do final do século XVIII e início do século XIX, qualificando-se, segundo Foucault, enquanto “uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas”[4]. Contudo, não se trata de um sistema exclusivamente inglês, pois na sua formação há importantes contribuições também da Alemanha e da França, cujas aplicações posteriormente foram exportadas, pelo menos, para o restante do mundo ocidental. Da Alemanha, nasceu a estatização da medicina, já no século XVIII, movimento que retirou o caráter restrito e iniciático das práticas médicas, para alocá-lo sob os auspícios da Universidade e do próprio Estado. A isto, chama Foucault de processo de “normalização da medicina”. Nas palavras do eminente filósofo e historiador:
Aparece a ideia de uma normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas. A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico. O médico foi o primeiro indivíduo normalizado na Alemanha.
[...]
Com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração de vários médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série de fenômenos inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina de Estado.[5]
                            No mesmo período, já agora na França, a proliferação de epidemias e a conseqüente necessidade de estabelecer-se um rígido controle sanitário, criou a idéia de quarentena, consistente na efetivação do poder de isolar, classificar e dominar fisicamente os indivíduos que pudessem significar algum risco à saúde coletiva. Para muito além de uma prática sanitária, este representou um verdadeiro exercício de um novel poder político, muito bem administrado pela burguesia, recém alçada ao poder político pela Revolução Francesa, consistente, segundo Foucault, “no modelo médico e político da quarentena”. E diz mais:
O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos.
[...]
A medicina urbana com seus métodos de vigilância, de hospitalização etc., não é mais do que um aperfeiçoamento, na segunda metade do século XVIII, do esquema político-médico da quarentena que tinha sido realizado no final da Idade Média, nos séculos XVI e XVII. A higiene pública é uma variação sofisticada do tema da quarentena e é daí que provém a grande medicina urbana que aparece na segunda metade do século XVIII e se desenvolve, sobretudo, na França.[6]
                            De todo este complexo de fatos coloridos pela dialética dos confrontos ideológicos surge o intricado sistema, que possibilitou três distintas coisas: “assistência médica ao pobre, controle da saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos gerais”[7]. Ainda segundo Focault, isso
permitiu a realização de três sistemas médicos superpostos e coexistentes: uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá-la.[8]
                            O genial filósofo fala não somente de um sistema médico de poder instituído nos primórdios do capitalismo industrial, mas na realidade de algo vigente ainda hoje, conforme pode-se verificar pela atual estrutura dos diversos serviços de saúde existentes aqui e alhures. Portanto, é de um sistema do presente e não de algo remoto e de valor meramente histórico do que fala. Daí não ser mera coincidência a semelhança deste tríplice e superposto sistema médico com as políticas públicas de saúde desenvolvidas não apenas no Brasil, mas no mundo ocidental em geral, nem muito menos a verificação de que estes sistemas se adéquam perfeitamente e necessariamente têm de ser levados em conta em qualquer análise sociológica e séria do caso do Hospital Evangélico de Curitiba e das ações da médica Virgínia Soares. Contudo, há um outro elemento que precisa ser levado em conta para a compreensão deste sistema, consistente na aferição do papel que os nosocômios exercem em seu bojo.
                            Parece óbvia demais a simbiose existente entre a atividade dos médicos e os serviços prestados nos hospitais, como se um não pudesse jamais existir sem o outro. Contudo, até a estrutural mudança operada pelo capitalismo industrial de meados do século XVIII, da qual já demos notícia, a atividade dos médicos era eminentemente privada e individual. Não freqüentavam os médicos hospitais, realizando seus serviços preferencialmente no domicílio dos pacientes ou em outros ambientes privados distintos dos hospitais. Não esqueçamos que a medicina praticada até a idade média era uma atividade alheia ao controle do Estado, por um lado, e por outro uma arte iniciática e exclusiva das classes dominantes. Até aquela época, os hospitais eram casas da morte, localizados na periferia das cidades, que exerciam uma função muita mais espiritual que clínica. Serviam não para curar, mas para preparar o espírito para a morte. Os médicos que eventualmente visitavam os hospitais não eram os mais respeitáveis de sua época, porque exatamente a excelência da arte médica àquele tempo definitivamente não estava associada a nenhum serviço hospitalar. Muito menos tinham eles qualquer relevância na hierarquia dos hospitais. A própria palavra surge nos tempos das cruzadas, inspirada diretamente no nome de uma ordem religiosa criada pela Igreja Católica com o objetivo de dar apoio aos peregrinos que visitassem Jerusalém. Referimo-nos à Ordem dos Hospitalários, cujas atividades eram notadamente religiosas e assistencialistas, mas às vezes também militar. Na lição de Foucault, temos o seguinte quadro:
O hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, que data do final do século XVIII. A consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar aparece claramente em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática: a visita e observação sistemática e comparada dos hospitais.
[...]
O hospital como instituição importante e mesmo essencial para a vida urbana do Ocidente, desde a Idade Média, não é uma instituição médica, e a medicina é nessa época, uma prática não hospitalar.
[...]
Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por essas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. É essa a função essencial do hospital.[9]
                            Para efetivar o específico propósito de transformar o hospital em um lugar de cura, não necessariamente de preparação para a morte, o processo realizou-se através do cumprimento de dois específicos propósitos. O primeiro seria o controle mais absoluto possível do paciente e do ambiente em que estivesse, transformando-o em mais que no objeto da terapia, em verdadeiro prisioneiro do sistema. Alguém a quem se precisa controlar e dominar até as minúcias, regrando toda a sua rotina. Tal propósito se atingiu com a instituição de rigorosa disciplina hospitalar. O segundo intento seria alçar o médico à condição superior na hierarquia hospitalar, desbancando os caridosos e religiosos que anteriormente exercitavam tal função. Para tanto, instituíram rigorosa codificação do procedimento da visita médica, que se traduziu num verdadeiro e disciplinado ritual, do qual ainda hoje temos memória antropológica. Os regulamentos dos hospitais do século XVIII determinavam o lugar em que cada pessoa deveria estar durante a visita, que o médico deveria ser anunciado por uma sineta, a enfermeira deveria estar à porta já com uma caderneta em mãos, devendo acompanhar o médico quando este adentrasse ao rescinto.
                            A despeito da disciplina imposta contra o paciente e o ambiente em que habita, sacamos as seguintes passagens da obra de Foucault:
A formação de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar, e, por outro, à transformação, nessa época, do saber e da prática médicos.
[...]
A cura é, nessa perspectiva, dirigida por uma intervenção médica que se endereça, não mais à doença propriamente dita, como na medicina da crise, mas ao que a circunda: o ar, a água, a temperatura ambiente, o regime, a alimentação etc.
[...]
É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento da intervenção médica e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do hospital médico. Esses dois fenômenos, distintos em sua origem, vão poder se ajustar com o aparecimento de uma disciplina hospitalar que terá por função assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que os doentes são colocados. Os doentes serão individualizados e distribuídos em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja registrado o que acontece; ao mesmo tempo se modificará o ar que respiram, a temperatura do meio, a água que bebem, o regime, de modo que o quadro hospitalar que os disciplina seja um instrumento de modificação com função terapêutica.[10]
                            Esta evidência, para muito além de explicar a moderna geografia dos hospitais em geral e das UTI’s em particular, onde existe um rigoroso controle do paciente e sua rotina em todos os aspectos materialmente possíveis, por intermédio do que se subjuga o próprio corpo físico do paciente em todas as suas nuanças, que vão da iluminação e umidade do ambiente até seus batimentos cardíacos, freqüência respiratória, qualidade do ar que respira, teores sanguineos e das excreções em geral, passando por tudo do que se alimenta, tanto no sentido da quantidade e qualidade, como também do tempo adequado para a ingestão de cada refeição, chegando até mesmo à postura física adequada para o paciente, prescrevendo se deve permanecer deitado, sentado e quanto tempo em cada uma das posições, se pode ou não tomar banho e com que freqüência, etc. Este grau de intervenção, não se trata apenas de condições da terapia, mas meio de domínio mais rigoroso possível do próprio corpo. Nem no sistema prisional (que como advertimos já, é outro meio ideológico de dominação) talvez não haja rigor tão exacerbado. Logo, não se trata de simples terapia, mas de dominação, que primeiro é física, pela pura detenção do corpo, mas igualmente é ideológica, que se processa através do discurso de que o médico tem o poder da cura, mas esta somente virá pela complacente e mansa submissão do paciente à respectiva terapia. Discurso, anote-se, que na maioria das vezes não corresponde à exata expressão da verdade.
                            (É dizer: o mesmo processo que recupera a saúde do capital da mão de obra representado pelo paciente pobre e capital propriamente do burguês, também aplaca a resistência natural do dominado pela postura de sabedoria imposta pelas práticas médicas. Mas na verdade sabem menos que demonstram, pois fundam as pilastras de seu conhecimento quase que exclusivamente na anatomia humana, que conhecem às minúcias e na química que exploram, tantas vezes irresponsavelmente, na cada vez mais variada alopatia. A própria terapia e tantos exames comumente oferecem riscos de intoxicação ou mesmo contaminação radioativa. Há uma dezena de indústrias que necessitam de lucros, assim como de mais novidades tecnológicas para ter ainda mais lucros. Há a indústria dos medicamentos, mas também dos exames e suas máquinas impressionantes, como ainda a das cirurgias, higiene hospitalas, equipamentos médicos, próteses, etc. Todas elas famintas pelo lucro crescente; todas necessitadas de uma quantidade cada vez maior de pacientes tanto ricos como pobres, cada qual, à sua maneira, alimentando e realimentando o complexo processo dialético da dominação econômica, até o dia em que eles mesmos, os próprios médicos, se transformam na lenha que alimenta o incessante processo. Mas, mesmo como pacientes, são minimamente respeitados no resto de dignidade que talvez lhes reste, agraciados que são pela boa, plácida e corporativa ética dos médicos. No final a certeza comum que carregamos todos, dominados e dominantes é a da nossa condição humana finita e imperfeita, representadas pela inescusabilidade dos fatos de que todos, ricos, pobres ou feios; todos sem exceção de nenhum que existiu ou venha ainda a existir; todos inevitavelmente morremos e defecamos. Até os médicos).
                            É importante conhecer estas tais nuanças da dominação; este sistema ideológico e político que é o grande responsável pela estrutura da teia social; que estratifica os diversos personagens sociais, dando a cada um uma distinta importância na estruturação desse tal sistema, cabendo a uns o controle, o lucro e a dominação; a outros a submissão e a inevitável vitimização. Por mais que indigne, é importante saber que os médicos, como todos os demais personagens da sociedade, são humanos e é enquanto humanos que agem na efetivação de seus diversos propósitos, escondendo-se por detrás das instituições para justificar atos tão nefastos. Ainda assim, é necessário sabermos o que se passa nos escuros reservados dos hospitais, onde os médicos se reúnem em seus momentos de folga, discutindo os casos mais inusitados com os quais se depararam àquele dia, e quiçá, decidindo secretamente a sorte do paciente que visitarão dali a poucos minutos. Na essência mesmo, os médicos não são tão diferentes assim dos juízes, que condenam um réu com a mesma praticidade com que se aplica uma fórmula matemática conhecida de há muito, ou um terrorista que acredita que a história é maior que a vida dos inocentes que pretende matar ou até mesmo do ditador, que possui inarredável convicção de que todos os tormentos; todas as torturas e homicídios serão sempre ínfimos perto da superior e divina missão que receberam de governar sabiamente seu povo. O próprio sistema trata de educar convenientemente seus médicos, primeiro para fazê-los acreditar que possuem uma superior ciência, próxima tantas vezes da própria onisciência divina. Mas também para serem firmes em seus diagnósticos, não demonstrando receio nem dúvidas (por mais firmemente que os possuam), ao mesmo tempo que frios, não se envolvendo com os problemas e dores do seu paciente, pois que deverão ser seres superiores, infensos a se contaminar pelas coisas humanas; das doenças e sofrimentos humanos. Pois como semideuses, estes tais problemas humanos não lhes pertence.
                            As constatações verificadas aqui não deverão olvidar-se dos inequívocos progressos da medicina. Afinal, se ao tempo de Hipócrates é correto entender que a medicina era mais ética, menos desumana, também é certo afirmar que a tecnologia médica é hoje muito mais avançada que alhures. Surtiram bons frutos os profundos estudos de anatomia, de maneira que os médicos são capazes de conhecer ínfimos detalhes do corpo humano. Também deram filhos os estudos de química, afinal conhecem irrecusavelmente os antibióticos, as benesses da assepsia, bem como os meandros da contaminação, tudo sem falar das milhares de substâncias capazes de interagir com o organismo, curando enfermidades as mais variadas. Não seria honesto negar as proezas realizadas pelas mais diversas cirurgias. Até órgãos são trocados de um corpo para outro, em boa parte das vezes com razoável sucesso. Mais avanços ainda encontraremos nos exames médicos, tanto pela beleza, precisão e rapidez com que suas máquinas esquadrinham o corpo humano, como pela quantidade e qualidade com a qual aferem os teores das mais variadas substâncias que povoam quase que misteriosamente o corpo de todos nós. A questão, pois, não é negar ou recusar os avanços dessa tecnologia, porque fazê-lo seria tão desonesto quanto aquilo que praticam os médicos; mas é entender o papel que esta tecnologia desempenha no âmago da sociedade; papel claramente de submissão ao sistema ideológico e econômico sustentado por todos os estratos sociais. A pergunta não é se existe uma tecnologia médica avançada e capaz de reconhecidas proezas, mas sim, a serviço de quem estará ela: se buscando a cura, pelo caminho da menor intervenção possível e com o mais alto grau de respeito à dignidade humana, ou enquanto instrumento do lucro e de um sistema que precisa intervir e apresentar novidades, mesmo quando a intervenção é desnecessária e a novidade tecnológica é simples maquiagem para vender mais.
                            Uma análise séria do sistema brasileiro público de saúde, o qual se propõe na teoria a garantir uma saúde universal e gratuita, onde todos isonomicamente, ricos e pobres teriam direito ao mesmo tratamento, sempre de qualidade, talvez nos empreste evidências daquilo que procuramos. A realidade já é bem conhecida da imprensa, que recorrentemente volta-se ao problema dos hospitais públicos lotados, sem profissionais suficientes que tantas vezes não conseguem prestar o auxílio mais básico a quem os procura. É muito mais digno morrer-se em casa, cercado pela família, que nas imundas filas ou corredores destes hospitais. É certo que se sofrerá bem menos assim. O dinheiro público destinado pelos orçamentos de todos os entes, por seu assustador volume não explica, contudo, adequadamente esta realidade. A imprensa, de seu turno, desencobre apenas parte do problema, pois é verdade sim que os médicos são muito competentes em fraudar o sistema público de saúde, cobrando por serviços que não realizaram, e medicamentos que não ministraram, elegendo procedimentos mais caros em detrimento de outros tantas vezes menos intervencionistas e necessariamente mais baratos e tantos outros procedimentos insólitos, todos placidamente aceitos pelos pacientes, que alimentados pelo desconhecimento e pela ignorância de se sentir protegidos, placidamente aceitam a tudo como sacrifícios necessários à cura tão almejada. O dinheiro, contudo, é tanto que mesmo estas peraltices médicas não são suficientes para dar-lhe cabo, pois sobra bastante ainda para ser despejado em proveito dos hospitais e laboratórios. Notadamente nos chamados tratamentos de alto custo, onde a tecnologia médica oferece alopáticos aparentemente milagrosos, que seriam capazes de proporcionar a cura para os desesperançados, se consome outra tanta e grande quantidade de recursos. Esta tecnologia, no entanto, nem sempre é eficaz e tantas outras ideologicamente mentirosas, pois se trata simplesmente de outro medicamento maquiado para ser mais caro ou para fugir do limite temporal de exploração de patentes. O restante que ainda sobra é rapidamente destinado ao cumprimento de ordens judiciais, que determinam ao sistema público custear tratamentos e medicamentos ainda não oficialmente reconhecidos pelo sistema como sendo adequados e necessários. Os pacientes, às vezes mal informados pelos médicos, alimentam a esperança de cura (que em tantas hipóteses é nada além da simples esperança), induzindo o juiz a determinar a ordem ao poder público. Na verdade, em todo este processo há apenas dois vencedores: os médicos e os laboratórios.
                            Igualmente são conhecidas e reconhecidas as relações incestuosas entre médicos e laboratórios farmacêuticos, onde os médicos ganham desde presentes caros e graciosos, até percentuais sobre a venda de determinados produtos, alimentando uma nefasta indústria, que proporcionalmente lucra muito mais do que cura. E as vítimas desta relação são tanto o dinheiro público quanto os pacientes mais abastados, pois na mesma medida em que têm acesso aos maiores avanços e novidades da tecnologia médica, pagam extremamente caro por usufruí-los. Se um empresário bem sucedido presume-se alguém que aprendeu a desvencilhar-se das armadilhas do mercado em que atua reconhecendo os engodos que se lhe apresentam, ele mesmo será talvez como uma criança inocente se estiver diante de um médico que lhe informe ter poucas chances de sobrevivência, exceto se permitir se submeter a tal e qual terapia, que seria de extrema eficiência, embora cara. Este precavido empresário certamente não titubeará em desapegar-se da sua estimada fortuna (acumulada em troca do sacrifício à própria saúde) em busca de mais alguns anos de vida. Qualquer um faria assim, desde que dispusesse dos meios necessários. É dentro deste sistema que deverá ser compreendida as diversas indústrias que circundam a medicina, as quais em nada mesmo (senão pelo apelo da cura e da longa vida) se diferenciam de todas as demais indústrias humanas. Levi Wenceslau, um jovem que acabou subitamente jogado no âmago do tormentoso universo dos médicos e destas indústrias de que aqui falamos, após um sério acidente automobilístico que o transmudou num tetraplégico, depois de mais de cinco anos de experiências, de maneira empírica (mas exatamente por isto, extremamente legítima – pois apresenta o conhecimento da vida e do sofrimento) compreendeu da maneira mais dorida esta nefasta realidade. Em seu livro de memórias, falando sobre as drogas que lhe ministram, assim como genericamente da tecnologia e do pessoal de que se tornou dependente, do alto de sua experiência pontifica que as drogas sintéticas são tão prejudiciais quanto as ilegais, “mas pelo preço de uma consulta médica se consegue uma receita que permite a compra da droga e deixa você dependente do médico e da droga”. Por estas nuanças, não há verdadeiro empenho na busca de uma cura definitiva e barata para a tetraplegia (e nós diríamos também para uma infinidade de outros males) porque, explica:
Infelizmente, existem forças contrárias à cura de lesões neurológicas e sempre existirão, enquanto a cura render menos lucro que a deficiência. Os deficientes alimentam uma indústria gigantesca. Se uma cura fosse anunciada agora mesmo, certamente, haveria algumas incertezas quanto ao futuro de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fabricantes de cadeiras de rodas, laboratórios farmacêuticos, planos de saúde e indústrias de materiais hospitalares, entre muitos outros setores envolvidos”.[11]
                            São estas mesmas indústrias e não outras que inspiraram as práticas inopinadamente descobertas na UTI do Hospital Evangélico de Curitiba, embora elas mesmas não permitirão jamais que a grande mídia noticie os interesses que alimentam e continuarão alimentando as práticas hospitalares aqui e alhures. Com muito esforço, o mesmo sistema que fez surgir a médica Virgínia Soares, lhe dando emprego bem remunerado e participação na venda dos alopáticos que prescrevia em sua UTI, ensinando, instruindo e encorajando-a a agir tal qual lha acusam de ter agido, alimentará agora a notícia de que se trata de um caso isolado e insólito, onde inadvertidamente se permitiu que uma mulher louca, inimiga do juramento de Hipócrates e distante das dezenas de indústrias alinhadas aos médicos, praticasse solitariamente meia dúzia de homicídios, mas de pacientes já sem esperança e longe da conivência de todo o restante do universo. Nada, enfim (é o que dirão), que seja capaz de abalar os insofismáveis avanços da moderna medicina, que a passos largos avança – em companhia de suas valiosas indústrias – no inevitável rumo da imortalidade e igualdade humana. Afinal, não poderá haver burguês melhor que o médico.


[1] JAEGER. Werner. Paidéia. P. 1015.
[2] In JAGER, Werner. Paidéia. P. 1058.
[3] In FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. 2ª Ed. São Paulo. P. 144.
[4] Idem. P. 169
[5] Idem. P. 149-0
[6] Idem. P. 157.
[7] Idem. P. 170.
[8] Idem
[9] Idem.
[10] Idem. P. 183-4.
[11] In WENCESLAU, Levi. Cadeira Elétrica. P. 75/94.

2 comentários: