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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


ELES, OS JUÍZES

                            Quando a revolução francesa flagrou-se vitoriosa, fundando as bases do mundo contemporâneo que conhecemos hoje, uma das mais ávidas providências do novo governo foi retirar poder dos juízes. Não os destituíram da chamada jurisdição (poder do Estado em dizer o direito, ou seja, quem tem ou não razão nas querelas privadas e públicas), mas relativizaram-na. Entre os franceses, a tal medida sagrou-se especialmente quando a nova ordem proibiu aos juízes julgarem causas contra o Estado da França (e assim é até hoje). O fundamento de tal extirpação foi o de que os juízes eram excessivamente aristocráticos, defensores dos interesses da classe alijada do poder pela revolução, de maneira que emprestar-lhes poder era dar azo aos movimentos contra-revolucionários. É dizer, se os juízes permanecessem tão poderosos quanto antes, as vitórias da revolução seriam todas preteridas ou relativizadas.
                            Visitar um fórum nos dias de hoje seja no interior, seja em uma capital qualquer, revela que eles, os juízes, somente pioraram nos últimos dois séculos. Continuam inacessíveis, fechados dentro de uma pseudo e podre sabedoria, ensimesmados na certeza de que são superiores às dores humanas. Despacham seus processos como deuses impondo desfechos tantas vezes inglórios aos casos que lhes são atribuídos. São assustadoramente preconceituosos. Encaram um processo como um ser técnico, etéreo e distante dos homens e seus sentimentos.
                            Não são capazes de perceber a obviedade de que no cerne de cada uma das ações que julgam estão pessoas, humanas, sensíveis e sofredoras, que admitiram a querela como última instância de solucionar um específico conflito. São vezeiros em repetir o absurdo argumento de que o judiciário não se presta a resolver conflitos psicológicos, sendo um simples e insensível órgão técnico, capaz de dar soluções meramente técnicas para problemas exclusivamente técnicos. Dizem assim certamente porque não olham nos olhos nem possuem um mínimo que seja de sensibilidade para perceber as agruras daquela mãe que precisa dar de comer a seus filhos e aguarda inexplicáveis anos para a solução da sua demanda; nem o pai vítima da alienação parental; nem o cidadão humilhado pelos maus comerciantes; nem o trabalhador explorado por seu patrão, nem o segurado da previdência que teve seu benefício injustamente negado, nem a vítima de danos, jamais reparada, nem o criminoso aguardando a quase certa prescrição de seu crime e muito menos o inocente no aguardo da justa absolvição que nunca virá. A simples morosidade é em si mesma a mais flagrante das injustiças cometidas todos os dias pelos nossos juízes, que solucionam a maioria das vezes causas vazias de conteúdo, pois ninguém busca uma sentença, mas a solução efetiva de um conflito. Rui Barbosa já advertiu que justiça tardia é injustiça patente.
                            Definitivamente, julgar é ato humano, feito pelos homens, com os homens e para os homens. Há muito pouco de verdadeira técnica nisso, senão naquilo que serve de limite contra os abusos dos próprios juízes. Não haveria como separar as almas torturadas e sofridas, tratadas como impessoais partes nas ações judiciais, das demandas que integram, senão na torpe e deturpada consciência dos juízes. Julgar é perceber este cabedal imenso e profundo, tantas vezes confuso, de fatos impregnados de sentimentos (pois são os sentimentos que dão o verdadeiro conteúdo aos fatos), desumanamente tratados como meras estatísticas pelos que são legalmente imbuídos da atribuição de julgá-los. É nisso especificamente onde repousa a mais ignóbil das deturpações do nosso sistema judiciário: no enorme ego dos magistrados. É por isso que nosso judiciário está a cada dia mais corroído, corrompido e desmoralizado: pois que restou maculado pela empáfia e arrogância de seus juízes.
                            Um dos grandes processualistas brasileiros, o Mineiro (e pasmem, desembargador aposentado), Humberto Theodoro Júnior, comentando uma das recentes reformas do Código de Processo Civil Brasileiro, saiu-se com a máxima de que a reforma era boa, porém inócua, pois faltava reformar a consciência dos nossos juízes. É exatamente disso o que precisamos quanto ao judiciário brasileiro: reformá-lo profundamente, a começar pelos seus juízes, fazendo-os humanos, sensíveis às demandas da sociedade e, porque não dizer, fazendo-se um de nós, explorados e indefesos cidadãos brasileiros. Será possível?
Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto