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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

 



PARA ELA

 

 

            Que tenho para dar a ela

Senão a bela aquarela,

            Torneada em passarela

            E dedicada toda a ela!

 

 

            Há algo que pulsa no universo interno de mim mesmo, chamando por não sabe o que, mas ainda assim é reconhecido como imensamente valioso. Sei perfeitamente que esse tesouro não está em pessoa ou lugar algum, mas somente no recôndito interior mais profundo. Ainda assim, encontra noutra pessoa a intimidade e confiança que imaginei não existirem na matéria.

 

            E, desde um misterioso instante

            É como se estivesse preso

            Numa dualidade constante

            Em dois mundos, ao mesmo tempo e ileso.

 

            Só o que tenho para ela são meus medos, dúvidas e incertezas que incessantemente alimentaram e alimentam minha alma já fazem centenas de gerações. Mas tudo isso com a brandura de quem já entendeu como irrecusável o universo perfeito e infinito que habita dentro e fora de cada um de nós, de tal maneira que tudo me parece leve e natural, mesmo as dores e tormentos pelos quais passei e pelos que terei ainda de passar.

 

            E é essa consciência pujante

            Que dentro de mim se expande,

            Que pra dor no coração é atenuante,

            De que nem se foge nem se esconde.

 

Jorge Emicles

 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

 

 

INEVITÁVEL (CONTO)

 

                  



    A morte é inevitável porque houve um dia em que teve de ser inevitável o nascer. Foi assim que aquele portenho já avançado nos anos iniciou seu inesperado relato sobre o sentido e as descobertas de sua própria existência. Era ele um mago a quem, após anos de pesquisas e buscas insondáveis, houvera encontrado por um suposto, mas muito feliz acaso. Entre os bruxos, contudo, nunca haverá encontros ao acaso, conforme ele mesmo insinuou logo às preliminares da conversa. Por isso mesmo, não por acaso resolveu ele que eu teria o necessário discernimento para apreender a ímpar lição extraível da história que iniciaria a contar. Era talvez uma espécie de parábola da busca da sabedoria. Uma lição de vida pelo exemplo da prática, quem sabe. Não sei explicar.

    O conhecia como a uma lenda, enquanto misterioso mago que aprendera os segredos da alquimia espiritual, ou a arte de desvelar a paz e a harmonia mais profundas mesmo em meio aos maiores tumultos da existência, através do que era capaz de se manter o equilíbrio e a evolução pacífica rumo ao caminho de volta da tortuosa estrada humana.  Na verdade, ele era mesmo um raro iluminado. Vê-lo pessoalmente, compreender que de fato era um ser de existência corpórea; era um espírito em carne de verdade; e que, mesmo tendo vencido memoráveis obstáculos continuava sendo um ser humano, em essência, absolutamente idêntico a todos os outros da espécie. Com as mesmas necessidades básicas de todos. Tudo isso me pôs profundamente reflexivo, confesso.

    As rugas do seu rosto e o cansaço de sua tez denotavam os sacrifícios e tormentos que tivera que se submeter para chegar ao que me parecia um estado de graça. O olhar calmo e a mansidão da fala davam a certeza da pujante verdade contida em suas sempre serenas palavras, ditas no ritmo de quem só as pronunciava quando estava convicto não somente das verdades que expressavam, mas, sobretudo, do merecimento do receptor em poder ouvi-las. Foi assim que disse:

 

 

§ 1º

 

    A história que vou te contar, começou a dizer o velho sábio, tem início no momento de maior desterro de minha vida; quando, condenado já à morte iminente, isolado e cheio de culpas e mágoas só pude me valer da fé e pedi com a potência do meu querer a cura e a misericórdia de poder servir à causa do Criador. Nessa noite, eu tive um sonho tão vívido que realidade nenhuma poderia ser mais concreta que aquela. Nele, recebi a notícia da cura e a missão de cuidar da minha própria alma gêmea, que tanto amava desde imemoráveis outras vidas. De fato, no sonho estava intimamente agasalhado nos braços de uma mulher. Não reconheci os traços do rosto dela, mas pela intensidade da energia que senti emanar daquele ser era induvidoso saber se tratar de beleza superior. Esse sentimento ficou tão impregnado em minhas entranhas, quase incomodando, que escrevi uma carta a essa mulher e, convicto, a guardei para entregar no tempo correto.

    Pois eis que foi no momento do maior medo e da mais completa solidão que emanei ao Cósmico o desejo mais sincero e, por isso, mais potente de minha existência. O Universo é mental, existe desde a Mente infinita do Incriado. O pedinte sincero, quando se põe em harmonia com a Mente Divina é capaz de criar também. Todas as possibilidades têm início na vontade e a mente humana, quando adequadamente utilizada, é capaz sim de criar coisas.

 

§ 2º

 

    As vibrações se entranham em todas as coisas e são, na realidade, a verdadeira essência delas. Só o que há são as vibrações emanadas do Pensamento Divino. Elas se harmonizam conforme o seu grau de emanação, mais rápido e puro próximo à divindade ou lento e grosseiro no âmago da matéria. Mas tudo são graus diferentes da mesma vibração. Por isso ela também havia tido um sonho e sentido o mesmo desejo e a idêntica energia, de maneira que as vibrações por mim emanadas chegaram até ela. Era o mesmo desejo, a união plena do mesmo sentimento.

    A partir desse instante se tornou absolutamente inevitável o encontro carnal do que já estava faz muito unido em espírito. Como tudo é movimento, era inevitável que ambos se pusessem em ação na intuitiva busca um do outro. Em silêncio, mas nunca desatentos, saímos a percorrer o mundo, cada qual partindo de seu canto sem saber para onde, nem em busca de quem, mas convictos de que era mesmo inevitável o encontro.

 

§ 3º

 

    O novo só se cria a partir da união dos gêneros. É essa a fagulha gerativa, regenerativa e criadora do Universo. Como é inevitável o surgimento do novo, foi igualmente inevitável o encontro desse casal. Por maior que seja a Criação sempre foi impossível o não encontro. Com naturalidade nos reconhecemos e seguimos no propósito de construção da caminhada em conjunto rumo ao que nos parecia o propósito comum.

    Eu a reconheci na carta que havia escrito antes de vê-la pela primeira vez, e ela se reconheceu nos sentimentos expressos e nas cenas narradas na missiva. Era uma prova da existência de uma história anterior a nós mesmos; uma inquestionável evidência de que todas as coisas se interligam e conspiram umas com as outras. Não fosse Divina essa orquestração seria inimaginável. Mas, como tudo no Universo, aquilo também era inevitável.

 

§ 4º

 

    Quando é verdadeiro e incondicional o amor é inevitável sentir dor. O Universo se expande e se contrai em um ritmo cíclico, contínuo e perpétuo. Funciona como um pêndulo despendendo sempre a mesma energia para ir e vir, na mesma velocidade e em idêntico movimento cíclico de ir e vir. A força do amor chama a provações e necessidades e, após o primeiro momento de êxtase do casal, nos defrontamos com as dificuldades em constância cada vez mais intensa e grave.

    As igualdades em perseverança e a aguerrividade das duas personalidades, foram os primeiros motes para os desacertos, que viraram brigas, que viraram mágoas, que viraram silêncios, que viraram distanciamento. O mesmo sentimento que atraía no início agora era o motivo do afastamento. As duas coisas na mesma intensidade. A imaturidade, tão própria daqueles jovens que éramos, nos arrastou para a incompreensão mútua porque não éramos capazes de compreender que as provações são a contraparte da dádiva do encontro de almas tão afins. Sem um não pode haver o outro, pois o tanto que vem é o tanto que vai. Por isso a música do Universo é tão rítmica e bela!

 

§ 5º

 

    O efeito é inevitável diante da causa, e os maus pensamentos e ações nos separaram com a mesma intensidade que os bons desejos nos fizeram correr o mundo, de desencontro em desencontro, até o único encontro que valeu realmente a pena. Mas o Universo flui sempre no ritmo e em consonância com suas leis, de tal forma que as mesmas sutis vibrações que uniram fizeram-nos repulsar um ao outro. A culpa é de nenhum porque sempre foi inevitável a necessidade de que sentíssemos a dor da perda do amor verdadeiro e do vazio da busca em outros de algo só encontrável no verdadeiro amor, aquele encontro raro, que poucos conseguem ter e que é irrepetível com qualquer outro. É como se realmente existissem almas gêmeas que se buscariam eternamente em vida e em pós vida, num ciclo quase sem fim, até o estado de nirvana.

    Se eram terríveis os assombros das conversas repetitivas, sem fim e sem sentido dos momentos de virulenta discussão, o silêncio e a calmaria da ausência eram mais morrediços ainda. Não havia paz nem em estarmos juntos nem distanciados. Nenhum dos dois conseguia se apegar a outras pessoas, por mais que se dedicasse a isso. Era inevitável tanto a dor da solidão quanto a da desassossegada convivência. Era uma incógnita lição que o Universo nos apresentava.

 

§ 6º

 

    Mas afinal, e qual será a diferença entre o infinito da solidão e a clausura da vida sociável? Não seriam polos distinto em grau, mas idênticos em essência, assim como são a luz e a treva; o quente e o frio ou o amor e o ódio? Afinal, tudo não é mesmo duplo; tem o seu par que é ao mesmo tempo semelhante e dessemelhante, mudando apenas em intensidade? Da mesma forma que o amor de nós dois se transmudou em ódio irracível; que o desejo não somente da companhia, mas também da carne do outro virou instinto de separação e que a necessidade do afeto e da empatia se transformou na busca consciente da solidão. Apesar do paradoxo, sempre vivemos eu e ela o mesmo sentimento um pelo outro e fomos firmes no propósito de sinceridade na apresentação das nossas verdades, umas vezes opostas, outras idênticas, mas tantas outras vezes distantes e indiferentes, apenas. Talvez em nada tenhamos sido diferentes dos outros casais.

    Quando a convivência vira dor, é hora de separar. Não se pode machucar o belo nem atentar contra qualquer dignidade. Era inevitável aprender a viver sozinho.

 

§ 7º

 

    E só porque fui sozinho, pude me dedicar às ciências ocultas e me tornar herdeiro dos alquimistas de Atlantida. Desde uma tradição nunca interrompida. Eu tenho a chave que tu buscas e poderei te revelar em outro momento. Antes, terás ainda algumas provações.

 

 

    Era uma pequena praça de Buenos Aires, próxima ao Obelisco. Eu, passante sempre curioso quis descobrir a praça que Borges costumava passear e, achando aquela praça, sentei-me em um dos bancos, para descansar um pouco e contemplar a energia do local. Dali a pouco chegou o velho e simplesmente se sentou ao meu lado, aguardando minha reação. Mesmo reconhecendo de quem se tratava por conta de uma cicatriz marcante na mão esquerda, que ele deixou bem evidente, duvidei de início ser realmente ele. Disse uma palavra de passe e ele respondeu sem titubeio. Não havia como duvidar que era ele! Exato na oportunidade que eu menos esperava.

    Quando teve certeza de que eu o havia reconhecido, foi falando sem que seu olhar magnético me permitisse interrompê-lo. Disse tudo pausadamente, para ter certeza que eu me lembraria de todas as coisas. Logo que acabou de falar se levantou e foi embora, sem olhar mais para trás. Eu fiquei sem ação, deixei-o ir passivamente. Passei bom tempo estático, quase que alheio a tudo que se passava a minha volta. Tentando entender que coisa estranha, única e ao mesmo tempo verdadeira havia acabado de vivenciar. Como se aquele lugar fosse mágico. Depois de muito contemplar aquele insólito, me levantei e continuei o meu passeio, sempre olhando bem para os lados, tentando sem sucesso reencontrar o velho.

    A lição que ele tinha a apresentar era que a sabedoria mais profunda só é possível aos solitários. Será mesmo que é preciso renunciar ao amor? Não haveria como alcançar a sabedoria e o amor na mesma vida? Não restaria algum vazio perpétuo pela falta do amor verdadeiro, por isso espontâneo e contante? Será mesmo que no fundo de seu espírito, mesmo após todos os sofrimentos que passou, o velho não desejaria reencontrar sua alma gêmea em outra vida, que, afinal, dada a idade com que já contava, não deveria estar tão distante?

    Se é inevitável o amor, não seria assim?

 

Jorge Emicles

terça-feira, 5 de novembro de 2024

 



SONETO DO ETERNO RETORNO


 

Se a mudança é necessária

E tudo no mundo chama o novo

Fico numa situação precária

Vendo o novo vindo de novo.

 

Se o que houve não tem volta,

Se o passado nos derrota

Como pode o que já foi

Outra vez nos dar um oi?

 

Pois eis que a vida é de retorno

Nosso esforço desmedido

Para além do repetido

 

Nos oferece como estorno

A chance de repetir de novo

O que até tínhamos esquecido.

 

Jorge Emicles

domingo, 24 de dezembro de 2023

 


  

O NORO

 

 

                   Zé Perrelo era cabra dos matos, nascido no tórrido chão do sertão do Ceará, na fazendo onde eram moradores os seus pais e, antes deles, seus avós. Teve a típica formação dos sertanejos, solto nas veredas da caatinga, desde cedo acostumado à lida do gado e da roça. Nas horas de folga, caçava passarinho e veado nas matas, tomava banho no açude da fazendo, frequentava as noites de samba que quando em vez aconteciam nas casas da redondeza.

                   Nesse típico exemplo de vida sertaneja cresceu menino, se pôs jovem, enamorou-se de Rosa, filha do vizinho Agostinho e ali mesmo, na dura realidade das longas secas intercaladas por raros anos de chuvada e fartura, na mesma fazendo onde nascera e crescera, também formou sua própria família. Rosa, sua mulher, era até estudada para seu nível de formação, tanto que passara alguns anos estudando na cidade, que na verdade era um pequeno povoado distante algumas léguas da fazenda. Lá, no distrito conhecido por Ferreiro, em memória esquecida da profissão de um antigo morador, era a única referência que tinha de urbe. Na verdade, era um pequeno aglomerado de casas, capaz de formar apenas duas pequenas e estreitas ruas, com uma pracinha e uma igreja, quase capela, ao centro. Cidade grande mesmo, cheia de arranha céus e veículos engarrafados não sabia como seria e, se visse, morreria de pânico.

                   Já era pai dos três meninos que lhe dera Rosa quando o governo trouxe a energia elétrica para a fazenda. E daí, junto a um tanto de benefícios, veio não somente a geladeira e os bicos de luz para clarear as noites, mas também a televisão, sintonizada através de uma enorme antena parabólica instalada no pobre telhado de sua residência. Sempre achou discrepante aquela imagem vista de longe: uma casa de taipa sem pintura, marrom da cor do barro batido para encher as fendas da madeira entrelaçada na estrutura interna da construção; a cara da pobreza e abandono do sertanejo e, paradoxalmente, aquela estrutura prateada e de geografia circular perfeita no teto da morada.

                   Não combinava nada, afinal, o colorido da modernidade com a secura cinzenta da vida no sertão que, no máximo, permitia se enverdejar nos raros anos de chuva. Lhe parecia antinatural a realidade apresentada na tela do aparelho, cheia de cidades superpovoadas, com vizinhos que dividiam a mesma parede, o mesmo chão e o mesmo teto dos minúsculos apartamentos dos enormes arranha céus; diferente da vida em espaços largos do sertão, onde no correr do dia se encontrava com pouquíssimos viventes, em geral, conhecidos de quem se sabia a ascendência e a descendência. Especialmente lhe causava estranheza o estilo de vida daquelas pessoas urbanizadas, indiferentes uns aos outros e de hábitos bem questionáveis. Era àquela cultura propagada com furor e alegria através do aparelho de televisão a quem atribuía seu desgosto.

                   Foi o filho caçula de Zé Perrelo o mais influenciado pelo universo paralelo apresentado pela televisão. Entendia o matuto que tudo era fruto da má influência das novelas e filmes apresentados através da telinha, ensinando costumes e valores bem diferentes dos que aprendeu dos pais e ensinou aos filhos. O fato é que, enquanto os dois filhos mais velhos logo jovens se iniciaram nas artes dos amantes, namorando as moças das redondezas, o mais novo sempre se mostrou muito ensimesmado, cheio de timidez, avesse às danças e aos demais eventos sociais da comunidade. Sempre preferiu ficar em casa, assistindo à programação que não cessava nunca até alta madrugada, quando já todos da casa grassavam em sono profundo. Por isso, achava Zé, Vicente, o Lôrim, como o chamavam os de casa, nunca se interessou por namoro.

                   Já contava com vinte e cinco anos o rapaz quando Zé estranhou uma amizade excessiva de Lôrim com o filho de Joaquim, um vizinho próximo. Fato é que os dois rapazes sempre estavam juntos, se encontravam diariamente, saíam para tomar banho no açude sempre em par, preferiam evitar outras companhias. Não se tocavam em público, mas houve certa ocasião em que Zé os flagrou no meio do mato, fazendo não sabe bem o quê. A cara de desconfiança dos dois não deixou muitas dúvidas sobre que artes andariam a fazer os jovens.

                   Transtornado com a descoberta, foi ter com Rosa, que, ao final, disse já saber de tudo e que ele não se metesse a besta porque hoje as pessoas eram livres, poderiam ser e se relacionar como bem entendessem. Até o papa já dissera que não havia nada de pecado nessas coisas e se nem Deus se opunha e esse estilo de vida, não haveria de ser o ignoto Zé quem se atreveria a dizer nada. Tratasse de se conformar com os gostos do filho e ai dele se dissesse um “a” que fosse contra o filho. Isso não o tornava nem melhor nem pior que os outros. Tudo isso estava na televisão. Todos são iguais, não importa a cor, o gênero ou as preferências. Era crime ter preconceito contra o filho e ela mesma o denunciaria por qualquer mau trato. Vergonha mesmo, alertou por fim Rosa, era os filhos terem seu pai preso.

                   As palavras da mulher foram tão contundentes que, por mais que não aceitasse o estilo de vida do filho, não teve jeito a dar. Se fosse o seu pai, sabia, encheria de sarrafo o lombo do menino até ele se arrepender. Mas, com a mulher que tinha, bem sabia que não poderia jamais fazer algo desse tipo. Depois, por mais que reprovasse aqueles gostos, não conseguia deslembrar que Vicente sempre foi o seu mais querido e apegado filho. Nada daquilo, no fundo, lhe atenuava o amor que sentia ao descendente.

                   Por tudo isso, trancou dentro de si a agonia que toda aquela situação lhe causava. E, nesse silêncio, amaldiçoou o quanto pode a chegada da televisão em sua pobre morada. Mesmo assim, não perdeu o hábito de assistir ao jornal nacional, já sempre trôpego de sono, todas as noites.

                   Aos poucos foi se acostumando com a presença de Vicente e seu amigo íntimo em todas as ocasiões da família. Nos aniversários, na semana santa, nos finais de semana, não importava. Sempre estavam lá os dois juntos, com as noras e, com o tempo, os netos, filhos dos seus outros dois filhos. Era impossível não se habituar àquele casal. Com o tempo, o próprio Zé já tratava com naturalidade o parceiro do filho. Lhe incomodava mesmo, no entanto, eram os olhares e risinhos cheios de sarcasmo dos vizinhos, escarnecendo às escondidas com o drama do pobre sertanejo.

                   Das brincadeiras que lhe faziam, a que mais incomodava era quando perguntavam o que, afinal, o filho do Joaquim era seu e de seu filho, porque até parecia gente da família, dono de uma intimidade que só mesmo os de casa tinham. Foi em uma dessas vezes, numa véspera de Natal, que Antônio de Deda, outro vizinho, entabulou a pergunta de quem seriam os seus convidados para a ceia de Natal, ao que Zé Perrelo respondeu que lá estariam seus três filhos, as esposas e Luiz, o filho de Joaquim. Não podendo perder a deixa, de pronto Antônio indaga: mas e, afinal, compadre, que diacho esse Luiz é seu, afinal toda reunião de família ele tá sempre, não é mesmo?

                   Engolindo a vergonha, Zé Perrelo decidiu acabar de vez com a chacota. De pronto disse então: é meu “noro”, hora. E tu num já sabe! Deixa os meninos em paz!

 

 

Jorge Emicles

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

 


 

 

SONETO DA MEDITAÇÃO

 

 

Para o mal da ansiedade

Há uma fórmula arretada

Desde a força de vontade

Se domina essa danada.

 

Comece pela respiração,

Puxe ar em profundidade.

Devagar, faça a expiração

E respire com qualidade.

 

Pouco a pouco você vai ver

Elevação, calma e inspiração

Vir dominando todo seu ser.

 

Há um caminho pra iluminação

Levado a sério, firme conduz

Nosso espírito a fina elevação.


Jorge Emicles

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

 



REALISMO JURÍDICO A BRASILEIRA

 

                        Primeiro, foi o ridículo espetáculo de assistir em rede nacional uma senadora inicialmente e depois um ror de parlamentares federais fazerem perguntas, entonação e gestos inquisidores, mais condenando liminarmente que dispostos a apurar qualquer verdade e por talvez centenas de vezes receber a resposta protocolar, incialmente lida, mas depois de algumas dezenas de réplicas dita de memória. De acordo com a ordem de habeas corpus parcialmente concedida e segundo a orientação de minha defesa técnica me reservo o direito de ficar calado. Foi esse o enredo melodramático do espaço do que é público da nossa república brasilis, versão Comissão Parlamentar Mista dos Atos Golpistas (CPMI do oito de janeiro). Meses depois, veio a bombástica notícia de que aquele mesmo sujeito taciturno havia realizado uma delação premiada, estando agora sujeito ao compromisso irrecusável da verdade, ao dever de produzir provas contra si mesmo e ao compromisso de colaborar com as investigações.

                        Talvez, diante do calor às vezes ensandecido das manchetes de jornal, nem precisássemos advertir sobre os nomes que envolvem o rumoroso caso, mas, via de dúvidas, deixaremos registrado para a posteridade se tratar aqui da inicial resistência a falar e, em seguida o colaboracionismo delator do ex-ajudante de ordens do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Pelos benefícios prometidos na decisão que homologou a delação, as verdades desveladas contra o chefe da quadrilha devem ser de arrepiar. A conferir.

                        À parte a veracidade da acusação, é de se indagar os motivos e a estrita legalidade dela, pois, no pano de fundo de todo esse tumultuado processo encontramos uma suprema corte estrategicamente empoderada através de uma interpretação do direito nem sempre clara e republicana. Na prática, temos um juiz prevento para todas as acusações; que conduz com mãos de ferro os trabalhos de investigação, dirigindo-os propriamente, ao mesmo tempo em que direciona os termos da denúncia a ser formulada, que presidirá o processo respectivo e, na qualidade de relator, proferirá o voto condutor do veredicto, que diferente da farsa acadêmica da neutralidade e alheamento dos juízes, será fruto de conversas prévias e reservadas nos gabinetes do tribunal. E não estamos nos referindo ao ex-juiz Sérgio Moro, veja bem.

                        No mínimo, todo esse imbróglio está a exigir um debate acadêmico mais adequado e profundo a respeito da aplicação ao caso de princípios comezinhos do direito brasileiro, tais quais o do juiz natural (que garante ao cidadão que somente poderá vir a ser julgado pelo órgão da jurisdição previamente estabelecido pelas regras de competência), o da imparcialidade do julgador (que garante que aquele que participou de outras atividades do processo, como a prévia investigação ou a acusação e defesa estará impedido de participar como julgador do mesmo processo), o da inércia da jurisdição (que diz que os juízes somente poderão agir mediante prévia provocação), o da titularidade da ação penal (que concede com exclusividade ao ministério público o poder de acusar pessoas de crimes) e, como pano de fundo a tudo isso, o do devido processo legal substantivo (que garante que o exercício da defesa deve ser efetivo, não meramente formal).

                        Nos estudos acadêmicos de hermenêutica jurídica encontramos uma escola de interpretação chamada por realismo jurídico, que dizia, sumariamente, que o direito é apenas o que foi decidido pelo juiz e, por consequência, não há direito nas leis, nos estudos científicos pertinentes à ciência jurídica nem nos valores afirmados e reproduzidos pela sociedade humana. Não importa o tamanho da barbaridade que se decida, sempre será chamado por direito aquilo que afirmem os tribunais. Imagine então, para ilustrar, que um juiz tenha declarado em uma sentença que uma parede de cor branca, na verdade é preta e que essa decisão tenha transitado em julgado (ou seja, dela não seja mais possível interpor nenhum recurso). A justiça formou uma verdade tecnicamente irrefutável de que essa tal parede agora era negra, mas, de fato, alguém, mirando o clarão radiante refletido pela luz vindo da parede ousará dizer que ela não é branca?

                        São dessa qualidade as armadilhas perigosas que as interpretações da suprema corte brasileiro vem construindo ao longo já de várias décadas. E é por causa delas, por exemplo, que se vem constrangendo a dizer que não era o que havia afirmado pouco antes. Veja: depois de vários pronunciamentos no sentido de que Sérgio Moro era o juiz natural para conhecer da acusação contra Lula (relativa a um prédio localizado em São Paulo [sendo Moro juiz no Paraná] sem nenhuma relação direta com qualquer obra ou outro contrato da Petrobrás [que por sua vez tem sede no Rio de Janeiro]), teve que dizer o contrário, acrescentando ainda que se tratava de juiz suspeito. Diga-se, teses já levantadas pela defesa desde seus primeiros pronunciamentos no processo. E por aí vão as decisões criacionistas do supremo tribunal brasileiro, tantas vezes tomadas em contrafação a legados históricos e consolidados firmados através de décadas, às vezes séculos de estudos jurídicos. Será mesmo que é assim que se deve construir o direito? Desde a filosofia de Heidegger podemos afirmar que não existe verdade sem uma tradição que a ampare e fundamente. E poderá haver direito, então?

                        Para muito além da questão pertinente à propriedade das famosas joias regaladas pelos árabes ao ex-presidente; às tramoias dos cartões de vacina e até mesmo aos atos preparatórios e executórios da tentativa de golpe, tudo entaramelado na sórdida manipulação das mídias sociais através das fake news, há uma questão ainda mais relevante, que diz respeito aos limites possíveis à atividade jurisdicional na pós-modernidade, que no Brasil ganha cores terrificantes. É preciso que vozes se levantem na sociedade; é necessário que a academia nacional debate com seriedade o assunto, pois a pena que a história cobrará pela omissão da sociedade será bem cara, se não já o está sendo.

 

Jorge Emicles

 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

 

O SÍRIO E A CORONELA








Em homenagem a Jorge Dummar Pinheiro

 

                            Desde garoto ainda, sua compleição física chamava a atenção de todos, mas especialmente das mulheres. Era alto, cabelos pretos bem escuros, rosto afilado e proporcional, mas, sobretudo, eram os seus olhos azuis, da cor do céu, quase transparentes o que mais se destacava na figura esbelta, máscula e atraente. Tudo isso era patrimônio natural da herança materna, de uma imigrante síria fugida da guerra e desembarcada no porto de Fortaleza ainda bem jovem. Também de beleza incomum, Adélia Dummar logo atraiu a atenção e cativou o amor de um filho de senhor de engenho do Cariri, com quem casou e teve cinco filhos. Jorge Dummar, o tão bem afamado e garboso entre as mulheres, era o terceiro rebento dessa união.

                            Jorge nunca se fazia de rogado quando percebia as facilidades e os favores ilícitos que sua beleza poderiam lhe regalar. Diziam, por exemplo, à boca miúda, que quando o jovem ia à boate de Glorinha, mais conhecida como cabaré mesmo, as funcionárias da casa digladiavam-se para serem a precursora no atendimento àquele cliente tão cobiçado e, não poucas vezes, ficavam tão extasiadas após a consumação de seu ofício que sequer cobravam por ele, dizendo que, se fossem justas, elas é que deveriam fazer a paga.

                            Era cobiçado com igual fervor também pelas jovens donzelas da elite local, que sempre passavam mais lentamente por ele que pelos demais frequentadores da praça Siqueira Campos, em Crato, num ritual de acasalamento bem próprio dessa comuna do Cariri do Ceará. O costume consistia na prática de que os homens, necessariamente os solteiros, sentavam-se em grupos nos bancos da praça enquanto as damas, nos seus melhores trajes circulavam a praça. Daí é que surgiam as paqueras, depois os bilhetes apaixonados e, enfim, o pedido formal de namoro, noivado e casamento ao pai da afortunada.

                            Jorge, na condição de semideus sírio da localidade poderia escolher quem daquelas jovens, belas e ricas moças quisesse para se casar. Na verdade, quase todas, porque entre as frequentadoras da praça Siqueira Campos havia uma que especialmente não lhe dava nenhuma atenção, passava durante o ritual de paqueras quase que o desprezando. Foi exatamente por isso que aquela moça, a única que lhe parecia impossível entre todas, foi por quem Jorge se apaixonou loucamente, perdendo totalmente o interesse por todas as outras.

                            Em suas incursões de desesperado amor, descobriu preocupado que a moça se tratava de uma neta da famigerada Fideralina Augusto, que fora chefe política da vizinha Lavras e de cuja fama de valente e intolerante não tivera fim nem mesmo após sua morte. A fama de valentões agora era extensiva a toda a família Augusto. Como o amor, por costume, desafia principalmente o impossível, nem as notícias horríveis referentes ao destino dos mancebos que tentaram desfortunar o bom nome das moças da família, às vezes até mesmo quando se prestavam a reparar o erro através do casamento, demoveu o enamorado de seu propósito. O moço não arredou pé de sua intenção de conhecer e se casar com a moça. Primeiro lhe enviou destemidas cartas de amor, mesmo diante da hipótese quase certa de ser descoberto, inclusive pela denúncia da própria moça, que bem poderia não corresponder às investidas.

                            Quis o destino, entretanto, que a moça de enamorasse do mancebo. Ao final, a harmoniosa figura daquele jovem, somado às belas palavras escritas nas missivas, que na verdade eram de autoria do irmão mais jovem de Jorge, surtiram o efeito desejado e eis que a bela, casta e séria Risalva respondeu dizendo que aceitava o pedido de namoro, desde que tudo fosse feito da maneira correta e oficial, a começar pela autorização e benção paterna.

                            Assim, em menos de um ano, os jovens noivaram e casaram-se. Como uma espécie de dote, costume fora de uso àquela época, o pai da noiva delegou ao novo genro a missão de assumir a administração do Sítio Tatu, que havia sido a sede do mandonismo da velha Fideralina e que, por conta de uma guerra de família acontecida alguns anos antes, estava abandonada. Aceita a missão, lá se foi o destemido Jorge retomar a posse dos Augustos sobre o casarão da matriarca, com os açudes, capela e vasta extensão de terras.

                            Logo no primeiro dia se apresentou aos moradores do sítio, divulgou-lhes os planos gerais de sua administração, dizendo quais os trabalhos seriam prioritários e quais os programados para as semanas seguintes e logo foi se alojar na antiga casa da matriarca. Era um típico casarão de sede de fazenda, alpendrado, com cômodos amplos e pé direito altíssimo. Arrumou uma velha moradora do sítio para lhe servir de cozinheira, quem aceitou o encargo sob a condição de que não queria dormir no local. Prometia chegar bem cedo, antes da chegada do sol e sair a hora da noite que fosse necessária, mas sob nenhum pretexto se permitiria dormir naquela velha casa. Sem entender bem o porquê, aceitou a proposta.

                            Por isso, naquela primeira noite, após se aproveitar de uma bem servida refeição, se viu já nas primeiras horas da noite sozinho na casa. Como estranhamente os moradores vizinhos não lhe vieram ter um dedo de prosa à noite, como era o costume dos vizinhos no sertão, resolveu que iria dormir cedo. Armou sua rede exatamente onde fora o quarto da matriarca da família e sem receios nem assombros, dormiu sono profundo e terno. Lhe pareceu que sonhava sonhos bons, talvez relacionados aos trabalhos que havia dirigido durante o dia e também aos que deveria desenvolver nos dias seguintes, de maneira que estava contente com seu feito, especialmente porque achava que iria cair em bom crédito junto ao sogro.

                            Até que, de repente, se acordou com uma série violenta de sacudidas em sua rede. Eram supostamente causadas não pelas mãos delicadas e frágeis de uma mulher, mas revelavam a força, talvez, de mais que um homem forte. Todas as luzes da casa estavam apagadas, por isso era de se esperar um breu total, especialmente naquela noite sem lua, mas o fato é que quando o jovem abriu os olhos, assustado pelas sacudidas, se deparou com um vulto luminoso, quase branco, que certamente era a causa de tudo aquilo. Ficou paralisado não sabe bem por quanto tempo. Mas tão logo conseguiu ter um mínimo controle sobre os movimentos, não titubeou um segundo, se pondo de pé em um pulo e correndo em direção à saída da casa.

                            A aurora o flagrou acocorado no terreiro da casa, aparentemente calmo, mas no fundo profundamente assustado, sem entender o que houvera. A velha governante estranhou ver o jovem patrão tão cedo já fora de casa, especialmente porque o viu despenteado e com cara de assustado. Jorge não negou o que lhe havia acontecido e, a partir de seu relato, cada morador do sítio acrescentou sua observação especial ao episódio, mesmo não o tendo presenciado.

                            Assim, até hoje, os visitantes do velho casarão, hoje outra vez abandonado pela família, contam que as noites ali são povoadas pelo espírito da própria Fideralina, sempre pronta a defender a posse sobre o lugar, mas também pelos escravos e cabras que a velha homicidara na sua insana luta pelo poder, como fizeram, afinal, todos os coronéis de seu tempo. Contam que se pode ouvir os gritos das torturas, o som dos ossos quebrados pelas pancadas dos torturadores e dos crâneos espocados pelas balas. Dizem também que no centro da construção há um cubículo, cujo único acesso é através do quarto da matriarca e que era lá onde aconteceram todos esses episódios.

 

Jorge Emicles