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sábado, 18 de setembro de 2021

 

O ROSÁRIO DE ORELHAS DA MÃE DINDINHA




 

                   Talvez só mesmo no caldeirão de cultura que fervilha no Cariri cearense, terra mágica na confluência de três Estados nordestinos, sombreado pela beleza natural da Chapada do Araripe e nutrido pela riqueza dos folguedos, lendas e tradições, dos quais muitos remontam aos tempos do domínio da nação Kariri, dos índios tristes e valentes que dominaram todo o vale do rio Salgado e arredores; somente nesse oásis alimentado por histórias mais violentas que pitorescas; mais de dores que de fulgores, poderíamos encontrar tantos mitos e histórias inimagináveis em culturas com diversas influências.

                   Pois foi nessa nação de brasileiros com identidade díspar, no seio de um povo guerreiro, miscigenado e resiliente que surgiu um caso raro e fora do convencional de uma mulher ascender ao poder absoluto no meio dos coronéis medievos que comandavam o mundo que dominaram pela força do bacamarte, dos cabras e dos cangaceiros, num período marcante e histórico do nordeste brasileiro.

                   A história da velha Fideralina, descendente direta do mais nobre sangue português, da linhagem do Marquês de Aracati, é algo tão improvável que disseminou-se como lenda e romance, registrada, entre tantos outros documentos, na poesia do Cego Aderaldo e na mestria da romancista Rachel de Queiroz. Não fosse o registro de importantes historiadores regionais, seu nome seguiria contado pela tradição oral apenas através do mito da Mãe Dindinha, mulher que do desterro da viuvez fez centro de poder, dominando desde a rigidez de seu luto fechado e sisudo o mundo inteiro de seu universo pessoal, ladeado pelas terras que sua vista era capaz de alcançar e banhado pelas águas do rio Salgado e pelos mistérios da caverna do Boqueirão desse rio, locado em terras também de sua propriedade.

                   Era um tempo em que a autoridade do mando se media pelas balas do bacamarte e pela valentia dos cabras e coronéis, donos que eram do poder absoluto em seus domínios. Eleições eram mera formalidade burocrática, porque se ascendia ou se perdia o poder através dos ataques surpresa e dos cercos bem planejados. Todas as grandes comunas do Cariri, nas duas primeiras décadas do século XX, tiveram seus mandatários depostos por esse estratagema, a exceção de dona Fideralina Augusto, dona de toda a Vila de Lavras da Mangabeira, no extremo norte da região e caminho para a capital do Estado.

                   Na intimidade da família, era conhecida pelo carinhoso epíteto de Mãe Dindinha, pelo que se revela a figura maternal que era no seio dos seus, o que não significa que admitisse qualquer desobediência de sua descendência. Era tão poderosa que somente ela pôde depor a si mesma, realocando-se outra vez no poder que havia se usurpado. O curioso episódio é não somente possível como aconteceu de fato, na ocasião em que depôs da chefia política seu filho desobediente para pôr em seu lugar o outro de sua preferência. Mas, na varanda da casa grande do sítio Tatu, centro de seus domínios, deu sua sentença final sobre o episódio: Torto, o filho ingrato, deveria ser deposto, mas estava proibido arrancar-lhe uma sequer gota de sangue. E assim se deu.

                   Também cuidou com esmero da educação de sua prole. Teve famoso filho médico e ainda no derradeiro ano do século XIX (ano de 1900) formou seu neto primogênito médico no Rio de Janeiro. Um importante assecla do famoso sanitarista Oswaldo Cruz. O neto de Mãe Dindinha foi ter na vila de Princesa Isabel, na Paraíba, onde combateu com destemor a peste que assolava a comuna, mas acabou ceifado pela inveja do poder e corrupção do ciúme, sendo covardemente assassinado pelo delegado do local em criminosa cumplicidade das autoridades políticas, judiciárias e mesmo eclesiástica da vila.

                   Naqueles idos, ainda mais que no presente, eram inúteis as quizilas jurídicas em desfavor dos poderosos. E Mãe Dindinha não era mulher conformada o suficiente para constituir advogado, habilitar-se como assistente da acusação e aguardar sentada e chorosa o veredicto do Concelho de Sentença, na esperança de ver através da aplicação da pena máxima contra os algozes do neto, constituir-se a justiça humana. Não. Para ela, a justiça era a da vingança, tradição firmada na memória antropológica da justiça medieval, que de alguma forma ressurgira no Nordeste brasileiro nos tempos do coronelismo.

                   Pois foi sem delongas, que logo que soube da horrenda morte do neto, reuniu numeroso exército, constituído de cabras bem armados e valentes, despachando-o de imediato à Vila de Princesa Isabel, com a missão de matar com crueldade e com piedade nenhuma todos os assassinos do seu descendente. Como prova do cumprimento da ordem, mandou ainda que trouxessem as orelhas dos decaídos algozes.

                   Como sempre, suas ordens foram meticulosamente cumpridas.

                   Foi assim que, passado pouco mais de uma semana da partida, retornaram os cabras trazendo o insólito troféu de seis orelhas decepadas unidas a um cordão grosso. Com satisfação inaudita, recebeu a velha o espólio da guerra, fez secar as orelhas ao sol, mantendo-as presas ao mesmo cordão da origem, e as guardou no famoso cubicu, vão central na construção da casa grande do seu quartel, o sítio Tatu, cuja única entrada era através de passagem secreta existente em seu quarto e desconhecido por quase todos os habitantes da casa. Ali, além do rosário de orelhas, com o qual periodicamente rezava pela infelicidade de seus inimigos, vez por outra a velha guardava armas e, às vezes, cabras fugitivos.

                   A cada nova morte ordenada pela matrona, adquiriu o hábito de encomendar a mesma relíquia como prova de consumação da ordem, fazendo encher em pouco tempo o já famoso rosário, que sem muita demora passou a ter mais orelhas que as contas dos rosários oficiais da igreja.

                   O dilúvio que desabou por todo o Nordeste dois anos depois do fim da lendária seca de 1915, já quase às vésperas do passamento da já divinizada Mãe Dindinha, fez estremecerem os alicerces da parede do açude do sítio, contíguo à casa grande. Temente de que a construção não resistisse a tamanha provação, acudiu-se do seu rosário e, mesmo debaixo da torrencial chuva que desabava, sem demonstrar qualquer temor aos horripilantes relâmpagos que despencavam do céu, se pôs ao pé da barragem, rosário na mão, e com a fé de quem era a dona de todo o mundo que conhecia, rezou com afinco por boas duas horas, mesmo com noite fechada, até que a água amainou e o perigo desapareceu por completo.

                   Em silêncio, retornou à casa, repondo a relíquia no esconderijo seguro e arreando exausta na cama sem sequer trocar as roupas encharcadas. Essa é a imagem mais cantada pelos escravos e demais moradores da casa, passando por seguidas gerações, permanecendo a história viva pela tradição oral como uma das mais encantadas das lendárias façanhas de Mãe Dindinha, a coronel de saias, mesmo passados já mais de cem anos de sua morte.

 

Jorge Emicles

Escritor