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segunda-feira, 15 de junho de 2020


O ETERNO RETORNO
CONTO





                   João Tenório ainda era uma criança quando na madrugada de 31 de março de 1964 a empáfia do general Olympio Mourão Filho deu o primeiro grito de sublevação militar contra a autoridade do Presidente do Brasil, prometendo lançar suas tropas de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro para a deposição do mandatário da nação. Na prática, pouco fez ou tinha a fazer, porque mesmo que tivesse o arrobo verdadeiro dos revolucionários lhe faltariam tropas bem treinadas, munição e até mesmo combustível para sitiar o Presidente em sua estadia na antiga Capital Federal. Ainda assim, sem gastar nem balas nem vidas, seu blefe foi o estopim final para o golpe, chamado de revolução pelos vencedores, que manteria os milicos ilegitimamente no poder pelos próximos vinte e um anos.
                   Tempos depois, quando se houvera instruído um pouco a respeito das revoluções e golpes de Estado, Tenório se perguntaria a exaustão como poderia uma falácia daquela natureza ser a causa de um regime sanguinário que à guisa de impor ordem e combater a corrupção, só degeneração trouxe ao povo que governou. Até que se encontrou com Tolstói, por quem se instruiu que a história é um processo inevitável; os acontecimentos se dão independente da vontade dos sujeitos que ilusoriamente imaginam terem sido o estopim dos fatos e mudanças de rumo do processo. Um general, por mais que pretenda, não tem o comando verdadeiro sobre o dedo ou o corpo do soldado, que efetivamente é quem aperta o gatilho, enfrenta corajosamente o inimigo ou simplesmente por medo recua, estando ganha ou perdida a batalha.
                   Não foi Mourão Filho a causa primeva do regime militar brasileiro. Também não foram as idas e vindas sem destino ou objetivo certo de Castello Branco ao termo daquele longo 31 de março. Muito menos as centenas de telefonemas que deu ou as conversas toscas e contraditórias que manteve. Muito menos foi o destino, mas a vontade irrefreável de um povo.
                   Assim foi porque assim quis a aristocracia, dona do capital, do prestígio elitista ou de ambos. Assim se deu porque a classe média maciçamente acreditou que a economia se renovaria, produzindo empregos, renda e melhor qualidade de vida. A classe alta queria mais lucro; a classe média mais renda; a pobreza almejava sair da miséria absoluta, descrente na promessa das reformas de base que todos atacavam como ideias de um tal de comunismo, que bem não sabiam de que tratava, mas com certeza não haveria de ser coisa do bom Deus.
                   De verdade, poucos havia que acreditavam em uma insurreição comunista tupiniquim. Assim como em 1937, o então capitão Olympoio Mourão Filho foi o artífice de uma narrativa romanceada de uma tal intentona comunista, apresentada como o famoso Plano Choen, discurso que justificou a instalação da ditadura fascista do Estado Novo; agora fazia crer na capacidade de articulação e poder efetivo de João Goulart para dar causa a um autogolpe comunista. Jango nunca foi um risco verdadeiro à democracia. As elites é que não a queriam, como jamais a quiseram de verdade. A massa do estrato social, a classe média, muito menos em tempo algum foi adepta incondicional das ideias rossoneanas. O que esses maiorais sempre quiseram é a tranquilidade da boa vida, não a consciência de mundo; não a abnegação da solidariedade; nunca a renúncia da divisão.
                   Ficaram bem vivas na memória de João Tenório todas as expressões elogiosas que seus parentes e amigos faziam à nascente ditatura. Seja no seio da intimidade, seja nas reuniões sociais, toda a casta da classe média frequentada por ele deu vivas e se mostrou otimista com o novo poder que se apresentava, firmemente erguido no pedestal de honestidade com a coisa pública e moralidade dos costumes privados. Não era preciso que não existisse corrupção; não tinha importância que não houvesse generais e padres pederastas; nem muito menos que se praticasse a tortura. Bastava que essas coisas não aparecessem nos jornais. O milagre econômico, o tricampeonato brasileiro de futebol mundial e a ordem geral que reinava na superfície da sociedade eram suficientes para aquela gente de poucos sonhos e mesquinhos propósitos.
                   Até que as refregas econômicas outra vez viesse a lhes abalar a indiferença sórdida contra o sofrimento dos assassinados sem julgamento, depostos sem motivos legítimos e toda a mais sanha de abusos e crueldades praticadas pelas armas gananciosas que empunhavam os generais e demais comandantes militares de todas as patentes, que através da arrogância das armas surrupiaram o país inteiro de suas mais comezinhas liberdades em troca da ignomínia do poder despótico e sem sentido do autoritarismo.
                   Não foi pelas lágrimas das mães que tiveram seus filhos mortos, fossem eles guerrilheiros violentos ou passantes despercebidos e confundidos por revoltosos; não foi pelos intelectuais sumariamente demitidos nas Universidades brasileiras, nem pela intervenção branca imposta a elas; muito menos foi pelas denúncias feitas pela igreja e pela OAB arrependidas do apoio inicial ao golpe que ruiu o regime militar brasileiro. Foi pura e simplesmente porque a classe média se empobreceu como consequência da grave crise econômica provocada pelo ruidoso e degringolado milagre econômico, que enfim sublevou-se contra o regime que por tantos anos aplaudiu e apoio.
                   E então, festiva, alegre e cantante como no carnaval, retornou outra vez às ruas para gritar vivas à liberdade; diretas para presidente!
                   Foi por esse tempo que João Tenório, já estudante universitário, descobriu com Hegel que a história se repete em fluxos de idas e vindas dialéticos; que aprendeu com Nietzsche a lei do eterno retorno...
                   Até que, anos depois, um outro general Mourão chega ao poder, desta feita arrastado pelos milhões de votos de um certo capitão a la Quixote. Como sempre, aplaudido e aclamado por uma risonha classe média.

Jorge Emicles