SALKANTAY
Partiu a procura de algo
Que já levava na bagagem:
Eis o que há mais
insólito
Sobre a busca de si
mesmo.
Desde bem pequeninas as crianças nascidas em
Urubamba, povoado quase esquecido do Peru, ouvem falar da Montanha Selvagem, a
montanha sagrada dos Inkas - Salkantay, lugar de veneração e devoção às forças
da natureza; lugar de aprender sobre a grandeza e delicadeza da Criação, onde
estão resumidos todos os princípios de Pachamama. Pelo menos é assim para os
descendentes do povo Quéchua, aqueles que deram fortaleza e fama aos renomados
Inkas, maiores dentre todos os habitantes da América do Sul em todos os tempos.
Para o menino Herber foi mágico o primeiro
avistamento daquela montanha. Embora dela tenha ouvido falar desde a mais
remota infância, foi a partir de Cusco, lugar que conheceu já quase adulto,
quando para lá foi estudar, que pôde ver aquele pequenino triângulo pintado de
branco contrastando com o verde, às vezes cinza, predominante da vegetação
local. Como pode, há de se ter perguntado aquele menino miúdo e desimportante,
invisível para tantos, dada a sua aparência tão comum, como pode algo
infinitamente minúsculo ser comentado com tanta grandiosidade entre seus
ancestrais? Como poderia aquela pintinha branca no céu ter chamado a atenção
dos grandes reis, habitantes do Umbigo do Mundo, a antiga Kosko, capital do
Império dos Inkas?
Mas a própria Cusco que conheceu o menino quase
adulto de quem falamos igualmente era imensamente distinta daquela que fora o
Umbigo do Mundo, significado da palavra Kosko, nome original do lugar. No tempo
do Inka Atahualpa a parte central da cidade era destacada pelo imenso palácio
imperial, defronte a uma praça toda coberta de fina areia do mar, trazida por ordem
do Inka do litoral do Pacífico, distante mais de mil quilômetros dali. A Cusco
que avistou Herber era uma cidade cosmopolita, querendo imitar as grandes
cidades ocidentais, cheia de prédios e gente desvairada, repleta de miséria, principalmente
a dos descendentes dos Quéchuas, todos quase iguais a Herber, na aparência e na
falta de um futuro promissor. Porém, por mais que Cusco desejasse ser igual às
demais metrópoles do mundo, com sua indiferença ao sentimento das pessoas que
as habitam, com pressa de seguir, não sabe para onde, não sabe para quê, jamais
poderá se assemelhar a nenhuma delas. Seja por conta de sua arquitetura, tão
cheia da presença dos Inkas, por mais que séculos de dominação colonial tenham
tentado destruir essa marca; seja pela inconfundível cultura ainda tão plena
das marcas pré-colombianas; seja mesmo pela aparência de seu povo, que por mais
que intente disfarçar ou mesmo negar, é marcadamente composta dos descentes
Quéchuas. Quantos Inkas não poderão haver entre os pobres e anônimos passantes
das ruas centrais da Cusco contemporânea? Quantos deles não estariam
servilmente a atender aos milhares de turistas que diariamente enchem o lugar
com sua curiosidade excêntrica, típica dos ocidentais; mas também com seu bem-vindo
dinheiro estrangeiro? Os Inkas não eram o povo inteiro, mas os seus reis, para
alguns, a sua nobreza. Aqueles sábios que deram ciência, prestígio e
notoriedade aos vales andinos; aqueles que os espanhóis dominaram e até hoje
exploram, de início tomando-lhes o ouro, modernamente se aproveitando da
curiosidade dos turistas.
Conforme foi se aprofundando nos estudos e no exame
da cultura Inka, o jovem Herber aumentou aos poucos seu conhecimento a respeito
da sabedoria de que era herdeiro, especialmente da Montanha Selvagem, que mais
e mais lhe fascinava. Os Inkas a consideravam sagrada não somente porque era
avistável já em Kosko, apesar da distância considerável, mas especialmente pelo
seu formato triangular. Representava a própria divindade criadora e sagrada, a
Pachamama. Até que houve o momento em que lhe foi possível subir à sagrada
montanha. Foi só então que Salkantay se revelou inteiramente a ele.
O sentimento que Herber teve na sua primeira
expedição foi muito próximo ao que os milhares de turistas que se aventuram na
escalada experimentam. Igual ao daquele mediano grupo de brasileiros que conduz
na atual viagem. Por isso os compreende tão bem. Tudo para Herber já é
conhecido, afinal é ele o guia de todos. Para os forasteiros, no entanto, cada
passada é uma novidade, às vezes uma difícil jornada. A caminhada é longa,
durará alguns dias. Será preciso testar as capacidades físicas e emocionais dos
viajantes. Os inaptos desistirão ao longo da jornada, numa clara evidência da
supremacia das leis da natureza sobre as convenções humanas. Não serão os mais
ricos nem os mais influentes que aportarão andando a Machupicchu dali a quatro
dias, mas os mais preparados. Não necessariamente os mais condicionados
aerobicamente chegarão primeiro, porque durante a jornada deverão vencer não
apenas às forças exteriores da natureza como também a um inimigo talvez ainda
mais implacável: a compreensão que têm de si mesmos e de seus limites, o que é
também vencer a natureza, mas agora a natureza interna e infinita que em cada
qual de nós habita. O pequeno Quéchua sabe que a jornada será extenuante, mas
paradoxalmente renovadora.
No primeiro dia todos estão excitados e felizes
pela aventura começante. Riem em abundância, falam mais ainda, param em demasia
para sacar fotografias porque tudo é novo e deslumbrante. Já no primeiro pouso
para o almoço se percebe o quanto se distanciaram uns dos outros. A longitude da
jornada deixa mais evidente a diferença entre as passadas do grupo. Uns foram
afoitos e chegaram à frente, sem se conscientizar, contudo, que o trecho mais
duro ainda está por vir. Outros já se esgotaram na primeira manhã da viagem, se
arrependendo em silêncio de mais não haverem se preparado para a dura
caminhada. Para esses, somente a dor ensinará da necessidade de planejar e
executar com rigor os preparativos para a grande jornada. Jornada que não é
aquela, a de Salkantay, mas a da vida, que exige ainda maior esforço e empenho para
ser superada.
Herber sabe que subir a montanha não é
simplesmente chegar ao topo de um cume elevado. Para chegar a Salkantay é
necessário se elevar espiritualmente, descobrir a divindade da montanha, mas
também o merecimento de poder contemplá-la dentro de si mesmo. Aqueles
passeantes aventureiros e felizes da primeira parte da jornada, contudo, ainda
não descobriram isso. É preciso subir, extenuar os músculos, testar as condições
do coração e dos pulmões e, sobretudo, o tamanho e a intensidade da vontade
sincera, para chegar ao descobrimento mágico do qual já é sabedor Herber.
O começo da jornada propriamente é o que virá a
seguir. Há uma visita à laguna de Humantay. A Cabeça da Montanha, outro cume
elevado dos Andes, vizinho a Salkantay, onde repousa uma lagoa gelada, cuja
fonte que a abastece provém do degelo dos picos mais acima. Subir a Humantay
parece fácil, exceto para quem se aventura na jornada. O que inicialmente era
uma charmosa figura branca vai crescendo a cada passo do viajante. A grande
montanha se torna não apenas maior, mas também mais opressora. A cada passo se
agiganta o monstro rochoso, pintado de branco. Um branco incomum, de uma
tonalidade que os pixels das telas não conseguem imitar. Não adianta fotografar
ou filmar a jornada. Sua verdadeira dimensão somente pode ser compreendida para
quem a faz. Porque, além da grandiosidade do cenário, sempre deslumbrante, tão
belo e tão grande que não caberá jamais no quadro de um fotógrafo, há também o
peso da montanha, que massacra a cada novo passo com maior volúpia o írrito
corpo do caminhante, tornando-o cada vez menor, disforme e sem forças. E não
haverá jamais lente ou tecnologia que capte a intensidade dessa relação de força
que esmaga não somente o corpo, como a
vontade toda do viajante.
Aquilo que há mais de cem quilômetros de distância
era um simpático ponto branco que enfeitava o topo de uma montanha supostamente
bem elevada, agora é um gigante de pedras a irradiar toda a sua poderosa massa
contra aqueles que se atrevem a desvendá-la. Dali, daquele passo da trilha
disforme, composta por vários caminhos, todos levando para o alto, para o mesmo
destino, é que é possível compreender a verdadeira dimensão do mito da esfinge.
Ou o caminheiro decifra o segredo da montanha ou ela o absorverá, anulando
completamente sua existência. Herber já sabe como desvendar o mistério. Os
viajantes não, pois aprenderão apenas os que seguirem tentando. O segredo é
exatamente o tamanho da vontade. Tudo é muito simples, pensa o Quêchua ao mirar
o esforço, resignação e até o desespero dos seus protegidos, todos heroicamente
travando uma penosa e quase perdida batalha para conseguir dar o próximo passo.
Eles ainda pensam que estão lutando contra a força da montanha, contra os
efeitos do ar já bem rarefeito àquela altura ou mesmo contra a gravidade ao
lhes empurrar pesadamente para baixo quando o que desejam é chegar à
esplendorosa altitude do lago gelado. Os que insistirem com essa batalha
inglória inevitavelmente perderão, pois não se vence ao poder da natureza.
Querer assim, é como se o homem pretendesse ser maior que Deus; mais perfeito
que Pachamama. Impossível lutar contra as forças da natureza, mas sempre é
viável dominá-las através do respeito e da consciência. Foi isso o que fizeram
os Inkas, conforme provam suas inexplicáveis construções, todas repletas de
toneladas de pedras cujos métodos de manuseio e transporte até hoje são
desconhecidos da ciência moderna. Dentro do seu silêncio atento, Herber sabe
que somente aqueles que perceberem que a luta não é contra o mal estar que
sentem, seja a falta de ar, ausência de forças ou tontura; mas sim contra sua
própria vontade é que conseguirão chegar ao destino.
É importante chegar a Humantay não só pela lagoa
em si que é recipiente do sagrado elemento da água. Mas pela autoconsciência da
potência da vontade. É esse o verdadeiro teste a que submete Herber seus
protegidos sem que eles o saibam. É uma prova deles contra si mesmos. Através
da vontade, contudo, todos poderão vencer a batalha. O Quêchua não conhece Schopenhauer,
famoso filósofo alemão, que se notabilizou pela sistematização da força da
vontade na natureza. A verdadeira potência de todas as coisas é a da vontade,
seja na natureza, seja na fenomenologia humana. Mesmo assim, nosso personagem
conhece melhor que todos os eruditos com quem já tenha tratado dessa importante
ciência. Toda a erudição do mundo, todas as centenas de milhares de tomos já
escritos, todos os séculos de estudo acumulados pela humanidade inteira são um
mero enfado, talvez quase uma inutilidade na altitude de Humantay. A verdadeira
sabedoria está com Herber, que a aprendeu diretamente de Pachamama, sem a
necessidade de uma letra ou dígrafo sequer. Tanto que os intelectuais ficaram
pelo caminho, presos sob o pesado escombro de tantos saberes. Só puderam
vislumbrar a laguna aqueles que se valeram das silenciosas lições do seu guia,
que só pelo mirar insistente lhes dizia para seguirem, para darem apenas um
passo por vez; a não terem pressa, mas seguirem insistentes. A eles, que
inconscientemente apreenderam a lição que talvez nem Schopenhauer tenha
compreendido em toda sua intensidade, foi conferido o grande mérito de
contemplar a água azul, refletindo a enorme geleira acima na mágica luz do
entardecer. Não haverão lentes nem tecnologias, repetimos, que sejam capazes de
descrever a imensurável grandeza daquele momento único. Muito menos existirão
palavras para refletir os pulsantes sentimentos que povoaram os corações dos
poucos presentes àquele instante.
Por mais bela que fosse a paisagem, o frio
convenceu todos a descer. Muitas vezes a descida é mais penosa que a subida. E
aquela foi para tantos. Agora, a cada novo passo do caminhante, ao mesmo tempo
em que se sentia vitorioso pelo objetivo alcançado, lhe pesava a incerteza da
manhã a seguir, que o convidava a superação ainda maior. Do teste passaram, mas
a verdadeira caminhada era chegar a altitude ainda maior, a do topo de
Salkantay. Não havia comemorações a fazer. Não ainda, porque os aguardava a
todos uma gelada noite no acampamento, seguida por uma penosa trilha de um dia
inteiro, com subidas ainda mais íngremes e perigosas; com descidas arriscadas,
cheias de pedras em falso. Valeria o sacrifício? Se perguntavam os caminhantes.
Valeria sim, respondia Herber no silêncio de seu meigo e simpático sorriso,
como se adivinhasse o temeroso pensamento contido em todos.
Dormir em temperatura quase glacial não é fácil
para ninguém. Mas sobrevivem os que consigam se agalhar devidamente. Logo pela
manhã, teve início a parte mais importante da jornada. Aos poucos, o pico de
Humantay foi se afastando dos viajantes e na mesma velocidade veio se
aproximando um gigante maior ainda, que devagarinho foi se apresentando em sua
verdadeira grandeza. A meio caminho do topo da montanha todos compreenderam que,
de fato, a aventura da véspera foi um simples teste, talvez uma broma pregada
por seu guia, porque todo o esforço desempenhado então nada seria perto do novo
desafio. São menos de quinhentos metros a diferença de um cume para o outro.
Mas os abismos da nova trilha, a consciência da imensurável altitude, à beira
de um enorme vale andino, tornou a jornada ainda mais temerosa. Aquela sim, era
uma jornada que exigiria um autoconhecimento ainda mais profundo; uma potência
de vontade muito maior. Mas também como na véspera, não adiantavam os livros. A
verdadeira sabedoria está em fazer. A maior das superações é ousar e conseguir
dar um passo a mais em direção àquela gigante, que pelo ângulo que se
avizinhava, parecia mesmo maior que toda a cordilheira da qual fazia parte.
A imensidão das montanhas fazia a todos terem
consciência da pequenez individual de cada qual. É impossível a seres tão
rasteiros, mesquinhos, egoístas, desprezíveis até, como somos nós da espécie
humana, conseguir atingir o topo de uma perfeição da natureza, como Salkantay.
Ela é enorme. Não haverá palavras em língua nenhuma capaz de descrever sua
perfeição, grandiosidade e beleza. Talvez só os Quéchuas mesmo tenham sido
capazes dessa descrição. Salkantay: Montanha Selvagem, quase inexplorável.
Inacessível à maioria dos mortais. Detentora dos mistérios de Pachamama. Símbolo
da sabedoria dos Inkas... Mas também um ser hostil, imensamente poderoso, que
bafeja sua potência contra aqueles ínfimos seres que a almejam explorar, contra
eles impondo a potestade de suas incalculáveis forças, oprimindo-os a seres
ainda mais míseros e desimportantes que de fato são. Mirar a grandiosidade da
montanha de tão perto é se autoconscientizar de quanto individualmente somos
pequeninos, desimportantes e desinteressantes. Pachamama parecerá grande demais
para perder tempo com seres tão sem significação. Que somos nós perto da
infinitude do universo? Senão nada à potência infinita? Salkantay nos prova
fisicamente essa irrefutável verdade.
Até dá tristeza aos caminhantes se perceberem tão
desimportantes diante da grandeza da natureza e de Deus. Herber vislumbra,
quando em vez, a tez de desassossego de seu grupo. Mas se cala, porque também
aquilo é parte do aprendizado. O pensamento que povoa a muitos dos peregrinos é
a vontade de desistir, pois qual o sentido de seguir diante da consciência de
tamanha pequenez individual? Quanto maior se torna a montanha, menores ficam
seus exploradores. Mas novamente a vontade é a chave para a nova descoberta.
Aos que seguirem, o cume da montanha guarda importante segredo. E, no seu
silêncio, o Quéchua estimula todos a
continuar sua jornada, que como se pode logo perceber, não é em rumo ao pico de
uma montanha gelada, mas na direção da altitude do próprio ser e do próprio
Deus.
O que poderia mover aqueles viajantes a jornada
tão insalubre? Todos, afinal, eram pessoas bem nutridas, por isso adequadamente
alimentadas, que de acordo com suas vestes e tezes poderiam presumir-se de bom
nível de vida, assentadas em rotinas plácidas e cheias de conforto.
Exercitar-se era um lazer e não uma necessidade. Por que, então, se
aventurariam na insólita e perigosa aventura de subir um cume tão elevado e
inóspito? Herber não conhecia a literatura portuguesa, porque a conveniência da
língua o educara na poesia escrita em castelhano. Não ouvira ainda falar em Fernando
Pessoa nem em seu heterônimo Ricardo Reis. Mesmo assim, como fez José Saramago,
de quem também não conhecia a obra, saberia responder que as razões que levavam
seus conduzidos a seguir montanha acima com tanta perseverança eram as mesmas
que motivaram Ricardo Reis a visitar a sepultura de Pessoa. Mas como pode a
criatura sobreviver ao criador? É que, diria Herber se acaso lhe
questionássemos, a criatura tem vida própria e independente, possui sentimentos
que são só seus; compreensões que lhes são únicas. Todos nós, continuaria o
guia, todos nós esses seres ínfimos, ainda mais diante da grandeza de
Pachamama, aqui, defronte a insuperabilidade de Montanha Selvagem, somos como a
criatura de Pessoa, senhoras de nossos sentimentos e desejos, por isso
independentes. Mesmo assim, frutos de uma fonte única, que é capaz de comportar
em si todas as diferenças da existência possível ou impossível. E, por mais
diferentes que sejamos uns dos outros e da nossa própria fonte, ainda assim
seguiremos sendo partes apenas de um todo bem maior que nós. A montanha não é
nossa inimiga. Apesar da aparência, não nos é inóspita. Ela é a própria
Pachamama, da qual fazemos parte, de onde provimos. Como Ricardo Reis quanto a
Fernando Pessoa, somos míseras criaturas da Mãe Natureza. Mesmo ínfimas,
únicas, insubstituíveis e de importância ímpar. Eis o segredo que pode conduzir
o caminhante ao alto da montanha, pois não se luta contra a montanha. Se
integra a ela formando um novo ser único e indivisível.
E assim, na medida em que os caminhantes iam se
conscientizando da sagrada lição da selvagem montanha iam, cada qual a seu ritmo,
devagarinho, aportando a seu cume. Um a um foram chegando todos. Alguns
chegavam sozinhos outros em pequenos grupos. Todos em silêncio. Tal qual é a
vida da espécie, que segue adiante sempre, mas em velocidade e com significado
diferente para cada qual dos viventes, aventureiros incônscios da sofisticada
aventura da existência carnal. Para todos foi sempre emocionante a chegada,
pois compreendiam, sem exceção, que haviam vencido. Não uma rochosa e gelada montanha,
mas a si próprios. Houve os que choraram, houve os que sorriram, houve também
os que congelaram a face, embora fervilhassem bem lá dentro, onde pulsa o coração
valente.
Com a chegada do derradeiro, reuniu então Herber
todo o grupo. Era chegada a hora do ritual de agradecimento. Postou-os em
semicírculo aberto na direção do cume, distribuiu a cada qual três folhas de
coca e uma pedra em tamanhos variados. Disse que, conforme a cultura Quéchua,
ali estavam diante de uma montanha sagrada, símbolo de todo o poder da Criação.
Para seu povo, poder representado por Pachamama. Pachamama, continuou, não é
somente a terra que nos apoia, mas toda a natureza. Portanto, também o vento, a
água, o fogo, assim como igualmente as energias e sentimentos que a tudo
habitam ao nosso redor. Era assim que compreendiam ao próprio Deus Criador.
Naquele momento, diante da grandeza da Criação, representada pela imensidão da
montanha gelada que miramos, é uma oportunidade tanto para agradecermos quanto
para pedir auxílio à Mãe Natureza. Assim, segurem com firmeza as folhas de coca
que têm nas mãos e em silêncio façam sua veneração. Conforme queiram, agradeçam
pelo que tenham conquistado e aprendido ou mesmo peçam algo importante, para si
ou alguém por quem tenham afeto. Peçam saúde, prosperidade ou sabedoria,
conforme seja a necessidade de cada um. Sempre em silêncio. Após alguns
instantes seguiu dizendo: agora ponham cada um as suas folhas de coca sob a
pedra que têm na mão, formando um conjunto de pedras que deve ter a forma de um
triângulo, próximo ao formato de Salkantay. E então, a sagrada montanha lhes
atenderá o desejo.
Foi com profundo amor que Herber conduziu o
ritual. Compreendia perfeitamente que aqueles turistas representavam a
exploração a qual seu povo fora submetido historicamente desde mais de
quinhentos anos passados. Primeiro os espanhóis lhes tomaram a liberdade e o
ouro. Lhes tentaram matar a cultura, que mesmo assim conseguiu sobreviver em silêncio
e em segredo na intimidade dos lares Quéchuas. Somente graças a essa
resistência heroica é que ele mesmo podia agora repetir com os estrangeiros o
ritual que aprendera de seus ancestrais, que por sua vez o aprenderam dos
próprios Inkas, que segundo se conta na tradição oral de seu povo, ainda mais
uma vez retornarão para libertá-los. Mas Herber não guardava qualquer mágoa por
essa dominação. Não se incomodava pelo fato de ninguém do grupo o haver
questionado a razão de ele, um autêntico Quéchua, haver sido batizado com um
nome de origem alemã. Se perguntado fosse, diria que fora um antídoto de sua mama
contra o preconceito que sempre recaiu contra os seus. Dar um nome estrangeiro
era uma forma de diminuir a opressão. Por isso estavam quase esquecidos entre
os seus os nomes tradicionais de sua gente. Por isso não se chamava, por
exemplo, Kusi Qoyllor, que quer dizer Estrela Feliz ou mesmo Inti, que significa
Sol. Não contou, embora teria dito com honor se acaso perguntado, que sua
filhinha fora batizada com um nome da tradição, que ela era chamada por Ima
Sumac, a Mais Doce, o que de fato era. Mas tudo aquilo, pensou Herber, era
passado. O que vale de verdade é o presente, é a possibilidade de ser útil e
praticar o bem. Era esse o propósito da existência, era essa a lição de
Pachamama. Em nome do seu povo, sinceramente perdoava todos os excessos
praticados pelos dominadores. O que era preciso de verdade era construir um
tempo de união e igualdade. Por isso que se entregou totalmente às energias do
ritual, como faziam os xamãs Inkas do passado.
E esse sentimento deixou seu coração leve como uma
pena de condor, que por isso o permitia flutuar sob todo o mar de desgraças que
já se abateu sob aquela terra, sem, contudo, se contaminar com a angústia e
sofrimento que já povoou aqueles lugares. Tudo era passado. A paz voltara a
reinar. Depois de haverem tomado parte naquele ritual e após terem se
empoderado das valiosas lições da viagem, pensou o guia, dali a vários anos
adiante, a morte os ceifará com maior candura.
Jorge Emicles