CORONEL GUSTAVO
AUGUSTO LIMA E OS CABRAS DE LAVRAS DA MANGABEIRA
Jorge Emicles
1.
INTRODUÇÃO
Fenômeno social dos mais intricados, o cangaço é
marcante na região hoje conhecida como nordeste brasileiro entre o final do
século XIX e primeiras décadas do século XX. Sua forma mais palatável e repercutida
na historiografia é a dos bandos de cangaceiros, que têm no famigerado Lampião
sua expressão mais difundida. Se tratavam de bandos armados que circulavam por
todo o sertão, invadindo fazendas e cidades, saqueando todos os bens de valor
que pudessem surrupiar.
Pode parecer que esses fora da lei estavam
totalmente em contrafação ao poder organizado no sertão nordestino,
antagonicamente posicionados às forças políticas e bélicas da região. Contudo,
são numerosos os relatos na historiografia de amizades e cumplicidades entre
esses bandos e os coronéis, expressão máxima do poder local nesse período. Bem
ao contrário, não foram poucas as vezes em que os coronéis se valeram da força
belicosa do cangaço para a consecução de seus objetivos políticos.
Talvez o mais famoso desses casos, seja a
concessão da comenda de capitão do batalhão patriótico da Guarda Nacional a
Virgulino Ferreira, o Lampião, em festiva solenidade ocorrida em Juazeiro do
Norte e presidida nada menos que por padre Cícero. À parte a polêmica inata que
esse evento ainda hoje causa entre os historiadores, esse é apenas um exemplo,
dentre tantos outros, de aliança entre os coronéis nordestinos e essa mão de
obra mercenária, sempre pronta a servir a todos os interesses locais mediante
recompensas que entendessem justas.
A mão-de-obra bélica dos coronéis nordestinos,
entretanto, não se resumia apenas a esses mercenários. Havia um exército
próprio, sempre de vigília para as lutas que se apresentassem, que nessa época
eram quase cotidianas. No cariri cearense, destacou-se a relação com os
chamados cabras. Conforme CALIXTO JÚNIOR (2017, p. 25), eram “em tempo de paz,
trabalhadores do eito, meeiros e vaqueiros. Em tempos de guerra – cabras em
armas. Viviam na dependência dos donos da terra, os coronéis latifundiários”.
O Cariri cearense é especialmente rico na cultura
coronelata. Teve aí, seu apogeu de maior destaque na política nacional e na
belicosidade de suas relações. Não são poucos os nomes que se destacam nesse
período, como são os exemplos sempre citados dos coronéis Belém, Antônio Luiz,
Antônio Róseo, Manoel Ribeiro, Domingos Leite, Antônio Leite e tantos outros,
isso para ficarmos apenas em alguns exemplos. Claro que a figura mais
proeminente entre todos é a do padre Cícero Romão Batista, para uns outro entre
os coronéis, para outros o conselheiro e conciliador entre todos. Fato é que
foi o padre o idealizador e grande fiador do chamado pacto dos coronéis,
através do qual se buscava dar cabo à guerrilha travada entre eles na busca da
consolidação do poder local. Fato é que o Juazeiro da época do padre Cícero
conheceu muitos e famosos cabras. Fato é que esses foram elementos essenciais
na tomada do poder estadual ocorrida no ano de 1914.
Mas igualmente não se poderá jamais abordar de
maneira completa o fenômeno do coronelismo e suas intricadas relações com os
cangaceiros, sem levar em conta ainda a elevada figura de dona Fideralina
Augusto Lima e seu portentoso e tumultuado feudo, lugar em que reinaram várias
gerações entre seus descendentes. De todos eles, o mais destacado é sem dúvidas
o seu filho, coronel Gustavo Augusto Lima, que depois de sua mãe, foi de longe
a maior e mais destacada liderança daquela região do Vale do Salgado, que por
isso colecionou muitos correligionários e inimigos de destaque e força
política, como é o melhor exemplo do poderoso Floro Bartolomeu, reconhecido
alter ego político do próprio padre Cícero.
Sempre com o apoio inestimável dos seus cabras,
tomou o coronel Gustavo seu lugar definitivo na história do Ceará e do
coronelismo nordestino.
O presente artigo, se propõe a investigar a sua
trajetória política, buscando desvelar o lugar apropriado de seu vulto nessa
importante passagem da história regional e nacional.
2.
A CHEGADA AO PODER
É nascido em 23 de agosto de 1861 no seio de uma
das mais importantes famílias do Cariri. Filho, neto e bisneto de coronéis,
teve desde a mais tenra idade convivência com a cultura do poder e as relações
entre os latifundiários e seus cabras e escravos. Não se conhecem relatos nesse
sentido, mas é quase certo que na sua infância de menino de engenho nos campos
do sítio Tatu, símbolo dos domínios de sua mãe, teve muitas oportunidades de
brincar no lombo dos escravos e subjugar os cabras da propriedade, numa relação
que embora não o sendo de fato, era bem próxima à servidão medieval.
Uma das características mais marcantes da educação
que recebeu de sua mãe, dona Fideralina Augusto Lima, foi o esmero pela instrução
formal. Dizia a matriarca do clã dos Augustos que a próxima geração exerceria o
poder a partir da força da caneta, não do bacamarte, como era na sua própria
época, de sorte a que teve especial zelo com a educação dos seus filhos e netos
(COUTO, 2018).
Não era o primogênito de dona Fideralina, mas o
seu quinto rebento. De início não foi preparado para assumir a chefia do clã,
lugar antes destacado para seu irmão mais velho, Honório, contra quem haveria
de protagonizar um dos mais peculiares episódios do coronelismo caririense.
Mesmo assim, foi enviado para estudar no tradicional Colégio do Padre Inácio de
Souza Rolim, em Cajazeiras, onde também estudaram José Marrocos e o próprio
padre Cícero Romão Batista.
Mas a sua vocação era para a política, o que bem
cedo o levou ao protagonismo de famosa rixa com seu irmão mais velho.
Antes mesmo de tomar as rédeas do poder em Lavras
da Mangabeira, exerceu vários cargos de honor, naturalmente sempre através das
firmes mãos de sua matriarca. Antes de 1907 já havia exercido o cargo de
coletor das rendas provinciais, membro do Conselho da Intendência Municipal e
já ostentava a patente de coronel da Primeira Companhia do Batalhão da Guarda
Municipal.
Foi em 26 de novembro de 1907 (MACEDO, 2017) que
se deu o episódio, de longe, mais marcante de sua vida, que iria definir seu
destino no mandonismo local, mas também na sua própria desgraça. Também é
evento profundamente marcante na vida de dona Fideralina, cujas consequências
retumbaram até a hora de sua morte. Pode-se dizer também que o passamento mesmo
do coronel Gustavo, quase vinte anos depois, foi inevitável desdobramento desse
terrível episódio de relevância política, sem dúvidas, mas sobremaneira
marcante para todo o clã dos Augustos.
Era tão poderoso o mandonismo exercido pela
tradição da família, que somente outro membro dela poderia desafiar as ordens
da matrona. Ou pelo menos tentar. Foi exatamente o que fez o filho Honório Correia
Lima, cuja descendência desboca no atual prefeito da capital Alencarina,
Roberto Cláudio. Foi Honório o primeiro a dissentir da orientação política da
mãe e por esforços próprios chegou a galgar a posição de líder do Partido
Governista em Lavras.
Dona Fideralina, contudo, não admitia que ninguém
brilhasse mais que ela mesma, o que a levou a tomar sérias providências. Após
firme recusa do filho em ceder o lugar conquistado, resolveu toma-lo pelas
armas. Valendo-se de seus destemidos cabras e sob a liderança de Gustavo, fez
apear do poder não somente do partido, como da própria Intendência Honório. Foi
o momento áureo da ascensão definitiva de Gustavo ao poder local, posto que foi
no lugar do irmão.
Uma das histórias mais replicadas da velha
Fideralina remonta exatamente a essa ocasião quando, ainda no alpendre do sítio
Tatu, dirigiu aos cabras liderados por Gustavo a sentença de que “aquele que
derramasse o sangue de Torto morreria” (MACEDO, 2017). Torto era o epíteto de
Honório.
Dali em diante a família nunca mais se
reunificaria, replicando aquela rusga original em vários outros episódios, que
ao termo conduziram à própria morte de Gustavo.
Tanto Honório quanto seu irmão Gustavo eram
casados com duas primas legítimas, ambas filhas de uma irmã de Fideralina,
Dulcéria Augusto de Oliveira, conhecia por Pombinha. Naquele episódio, Pombinha
tomou as dores de Honório, tendo se arregimentado a ele na indignação pela
desfeita de Fideralina. Daí nasce a inimizade e oposição perpétua levada a cabo
pelas irmãs até o final de suas vidas. Consta que já no leito de morte,
Fideralina chamou a irmã para proceder às pazes, ao que Pombinha retrucou que
não iria, que se fosse para perdoar, faria isso à distância mesmo (MACEDO,
2017). Uma vez que Honório se retirou para Fortaleza (jamais tendo retornado a
Lavras), a liderança da oposição coube a Pombinha.
Outra cena folclórica, também decorrente desse
episódio, se deu quando, a partir da queda da oligarquia de Nogueira Accioly, começaram
a ser nomeados os novos Intendentes municipais adversários dos coronéis. A
indicação para a Intendência de Lavras teve o patrocínio de Pombinha (tendo
recaído na pessoa de seu genro, conhecido por Zé Burrego), que em cumprimento a
promessa atravessou todo o largo da Matriz da cidade de joelhos, indo assim até
o altar, em louvor pela graça alcançada, que era a aparente derrocada política
e sua irmã (MACEDO, 1990).
Mas aquele foi apenas um hiato passageiro do
poderio absoluto de dona Fideralina, seu filho Gustavo e a horda de cabras que
lhes garantia o mandonismo.
3.
A INVASÃO DE LAVRAS
No Cariri cearense, o fenômeno do coronelismo teve
cores bem marcantes e violentas. Enquanto no âmbito nacional vigia a Velha
República, no plano estadual foi o tempo do reinado despótico de Nogueira Accioly,
que ganhou nas armas e nos cabras dos coronéis locais uma de suas forças mais
consideráveis. Embora as fraudes eleitorais garantissem a vitória da situação
em todo os pleitos, o poder nesse rincão era tomado a bala. A lei e a ordem
prometidos pela autoridade maior da oligarquia Accioly de quase nada valiam.
Para ascender ou se manter no poder era
imprescindível o fogo do bacamarte e a força dos cabras, arregimentados entre
os trabalhadores braçais dos coronéis ou alugados quando era necessário
fortalecer o regimento.
Nesse período, houve alteração no mando dos
coronéis em quase todas as cidades caririenses. Sempre arregimentados pelo
poder da bala, os inimigos simplesmente cercavam, dominavam o opositor e o
depunham. Não houve um único caso de reação por parte do poder do Estado. A
postura do comendador Nogueira Accioly sempre foi a de consagrar na Intendência
municipal o coronel vencedor do embate (MACEDO, 1990).
Assim caiu o coronel Belém, em Crato, Neco Ribeiro
em Barbalha e Antonio Roseo em Missão Velha. Um dos episódios mais marcados
pela violência foi a chamada questão de 8 (porque ocorrido no ano de 1908), em
Aurora, que antes da deposição do poder local do coronel Totonho Leite, deu azo
à terrível chacina do Taveira, uma emboscada a mando do coronel Totonho e com a
participação de homens do governo do Estado, que resistida, levou ao poder
outra famosa matrona caririense, dona Marica Macedo, ou Marica do Tipi (MACEDO,
1990).
Esse derradeiro episódio teve reflexos indiretos
no acontecimento de 1910 em Lavras da Mangabeira, onde no curso da sequência de
levantes do poder local, também tentaram apear do poder o coronel Gustavo
Augusto.
O acontecido teve vez em oito de abril de 1910,
quando aproximadamente cento e cinquenta cabras, liderados por Quinco Vasques
(Joaquim Vasques Landim), proveniente da serra de São Pedro (hoje Caririaçu),
tomou as ruas de Lavras e apeio fogo de bacamarte contra a residência do
coronel Gustavo Augusto Lima, que avisado com antecedência do ataque, havia
arregimentado seu pessoal, o que possibilitou que resistisse com sucesso.
Esgotada a munição do agressor, forçado foi a bater em retirada. CALIXTO JÚNIOR
(2017) em obra específica sobre esse acontecimento não consegue identificar as
razões precisas que teria Quinco Vasques para entregar-se a tão perigosa
empreitada. Aduz, contudo, que “foi atribuída pelo Pe. Alencar Peixoto a
responsabilidade do ataque a Lavras (...) aos mandões do Crato” (CALIXTO
JÚNIOR, 2017, p. 55). Também em outra passagem do mesmo trabalho, conclui ter
havido algum tipo de atrito entre Gustavo e Vasques desconhecido, contudo, das
fontes históricas.
Do inquérito que foi instaurado para apurar tal
ocorrido, o próprio Quinco Vasques confessa que ao cabo de sua missão deveria
entregar a intendência a José Augusto de Oliveira, o Zé Burrego, por sua vez
filho de Pombinha e cunhado do coronel Gustavo. Também, antes de invadir a vila
de Lavras, Vasques pernoitou na propriedade do major Eusébio Tomás de Aquino,
primo de Gustavo. Já na urbe, invadiram a casa do irmão de Gustavo, coronel
Francisco Augusto Correia Lima. Apesar do parentesco com a vítima do ataque,
ambas as personagens eram seus inimigos políticos, partidários da dissidente
Pombinha (MACEDO, 1990).
Por sua vez, há evidências de que os derrotados de
oito, em Aurora, intentavam fortalecer sua posição através da nova Intendência
de Lavras, o que facilitaria a retomada de seu poder em Aurora. Conforme vaticina
MACEDO (1990, p. 122), é preciso se considerar “as profundas vinculações de
parentesco e amizade de José Augusto de Oliveira, ou seja, José Borrego, e José
Leite de Oliveira com os Leites e Gonçalves de Aurora, os quais (...) haviam
sido escorraçados, com seu chefe, o coronel Antônio Leite Teixeira, vulgo,
Totonho Leite”.
Portanto, o ataque era claramente uma tentativa de
substituir o poder de um coronel por outro, dessa feita com peculiaridade de
serem os pretensos depositor e deposto membros da mesma família. Claro revide à
deposição anos antes do coronel Honório. Só que dessa vez, foi vencedora a
resistência, no único episódio no Cariri de manutenção do mesmo potentado após
os ataques dos inimigos.
Logo no ano seguinte viria a ter fim a prática da
deposição à bala. Não pela autoridade do oligarca Accioly, que seguia como
sempre pusilanimemente referendando o vencedor pelas armas, alegando o fato
consumado, mas pela arte nada menos que de padre Cícero, que valendo-se da
autoridade e respeito que possuía sobre todos os contendores, arquitetou o
famoso Pacto dos Coronéis, documento firmado em Juazeiro, sob a presidência do
padre, que estabelecia o armistício e a instituição de procedimentos pacíficos
de solução de futuros conflitos.
E desde então não houve mais refregas desse tipo
no Cariri.
Os tiros de bacamarte, contudo, ainda não
silenciaram, porque com a queda da oligarquia Accioly, veio a desgraça política
de todos os coronéis locais, que humilhados viram a substituição de seus Intendentes
por pessoas da confiança do novo Presidente do Estado, Franco Rabelo.
Era preciso derrubá-lo, pois. E a tempestade
perfeita se apresentou quando o Presidente do Estado se recusou a apoiar a
candidatura do todo poderoso Pinheiro Machado à Presidência da República.
4.
A REVOLUÇÃO DE 1914
A oligarquia Accioly, que bem ou mal era o
sustentáculo a nível estadual do poderio dos coronéis entra em ruína em janeiro
de 1912, ascendendo então ao poder o coronel Franco Rabelo, vinculado à
oposição e sem qualquer experiência ou leitura política das relações de poder
local, inclusive porque estava afastado do Estado a longos anos.
Em seus primeiros atos, toma medidas não somente
que o conduziriam ao afastamento dos coronéis, como finca trincheira no combate
ao banditismo generalizado francamente tutelado pelas práticas deles. O
rompimento era inevitável.
Em Lavras da Mangabeira, ascende então ao poder na
Intendência municipal Zé Burrego, que apesar de seu parentesco com Fideralina
Augusto Lima, era correligionário de sua irmã, Pombinha. É exatamente nesse
ponto em que se deu o episódio do cumprimento da promessa de Pombinha, que de
joelhos percorreu todo o caminho entre sua residência até o altar da matriz de
São Vicente Férrer, em Lavras, episódio do qual já tratamos brevemente.
Igualmente em todos os demais municípios caririenses foram sendo depostos os
coronéis e seus prepostos, dando vez a uma nova casta de mandatários, tantas
vezes mais ferozes que os depostos.
Bom exemplo desse período temos na deposição de
Antônio Luís Alves Pequeno, Intendente aciolista em Crato, substituído que foi
por Francisco José de Brito, o lendário Chico de Brito. Exatamente nessa
ocasião, Chico de Brito, antes mesmo de receber a nomeação do novo Presidente
do Estado, resolveu invadir o paço da Prefeitura e depor por suas próprias
forças Antônio Luís. Indagado com base em qual lei fazia aquele ato, retrucou
ser com fundamento na lei de sua arma. Foi assim que surgiu na tradição oral
dos caririenses o famoso aforismo da lei de Chico de Brito. (MACEDO, 1990).
Como bem adverte PINHEIRO (2011), tamanha afronta
ao poderio dos coronéis locais, assomada à oposição a nível nacional à então
imbatível candidatura do gaúcho Pinheiro Machado à Presidência da República
inevitavelmente levaria à deposição do novo governo.
A organização do levante coube propriamente a
Floro Bartolomeu, que necessariamente agia como porta voz do padre Cícero. O
sacerdote, por sua vez, chegou mesmo a negar em seu testamento qualquer
responsabilidade sobre os acontecimentos que redundaram na deposição de Franco
Rabelo (CAVA, 2014), mas naqueles idos ninguém duvidava de estar nas sagradas
mãos do padre o direcionamento final de todo o processo de resistência.
Naturalmente, como pela força da gravidade, todos os coronéis locais assomaram
forças ao movimento de resistência de Juazeiro, inclusive o líder deposto de
Crato, coronel Antônio Luís, que chegou na fase mais crítica do processo a se
mudar para Juazeiro. (NETO, 2009).
O coronel Gustavo Augusto Lima e todo seu grupo
político, inclusive sua mãe, tiveram importante participação nesse episódio tão
singular da história do Cariri e de todo o Ceará. Tanto foi apoiador de
primeira hora quanto hipotecou ao movimento dinheiro, armas e cabras, tendo
tido relevante participação durante o desenrolar dos acontecimentos,
rivalizando mesmo com a liderança de Floro Bartolomeu.
A guerra propriamente tem início com a invasão do
Crato pelos romeiros ciceranos, seguindo em incontinente rumo ao litoral, até a
derrubada da capital Alencarina. No caminho, pousaram as tropas no terreiro da
velha Fideralina, no sítio Tatu, que os acolheu com mantimentos, além de
agregar novos cabras e armamentos, necessário reforço para a intentona (MACEDO,
1990).
Quando as tropas rebeldes irromperam em Fortaleza,
encontrava-se em sua vanguarda o coronel Gustavo Augusto Lima, sendo aclamado
pelo comando da revolução como general de campo, em reconhecimento a suas
sagazes estratégias (MACEDO, 2017). Também graças a seus movimentos no xadrez
político galgou importante vitória sobre Floro Bartolomeu naquele primeiro
instante de vitória, pois foi eleito vice-Presidente do Estado, acumulando
ainda os cargos de intendente de Lavras da Mangabeira e Deputado à Assembleia
Legislativa.
Por tal desfeita, jamais foi perdoado por Floro
Bartolomeu, de quem se sagrou inimigo pelo resto da vida. Causaram espécie os
pronunciamentos do médico baiano em desfavor da Gustavo Lima, acusando-o, entre
outras desfeitas, de covarde, corrupto e até mesmo falsário, acusações
amplamente repercutidas na imprensa local e nacional. Era agnominado pelo
deputado de “herói das fugas” (CALIXTO JÚNIOR, 2017). Há uma série de oito
artigos publicados por Floro Bartolomeu no periódico O Unitário, de Fortaleza,
intitulados todos de “Formal Desmentido”, no âmbito dos quais desbulha as
detratações contra seu inimigo.
Conta a tradição oral não somente que Gustavo Lima
prometeu mandar moer Floro nas moendas do engenho do Pau Amarelo (sítio de sua
propriedade), como que o médico e deputado, quando vinha de trem de Fortaleza
em direção a Juazeiro, desembarcava sempre em Iguatu e não em Lavras, que seria
à época a última estação da rede ferroviária (por isso, mais próxima de seu
destino), exatamente por temor à vindita da família Augusto. O fato é que nem o
destempero de Floro foi capaz de por freio ao destemido Gustavo.
Destemor que encontraria ainda assim fim dentro
das artimanhas tramadas no seio da própria família.
5.
O DIA DO BARULHO
Era tão grande e indevassável o potentado dos
Augustos, que somente outro membro do clã teria a audácia de tentar
destrona-los. A própria invasão de Lavras em 1910, como já destacado, tem a
sogra e o cunhado de Gustavo entre seus mentores e beneficiários últimos.
Foram exatamente os desdobramentos da derrubada de
Honório Correia Lima por sua mãe que fizeram germinar a ferrenha oposição
contra Gustavo e sua genitora no seio da própria família, cujos desdobramentos
desaguaram nos acontecimentos de nove de janeiro de 1922. Naquele tempo, a
velha dona Fideralina já não mais contava entre os vivos faziam três anos. Sua
ausência em carne fez acirrar ainda mais as antigas contendas, a ponto de todos
resolverem solucionar o histórico entrevero literalmente à bala. Conta a tradição
oral que a cidade de Lavras àquele dia foi dominada por tiroteio generalizado
entre familiares. De um lado, Zé Burrego e José Leite de Oliveira (Zé Leite),
que apesar de inimigos de Gustavo eram seus primo e cunhado.
Vários membros da família mudaram-se de Lavras da
Mangabeira após a hecatombe, a exemplo de Amâncio Lacerda Lei e sua mulher
Lídia, ambos netos de Fideralina, ela filha do próprio Gustavo.
O coronel Gustavo não estava em Lavras àquele dia,
mas pagou preço alto pelo acontecimento, pois a ele foi atribuída a matança. Do
lado de Gustavo Augusto Lima, restou baleado seu filho Raimundo Augusto,
prefeito Municipal e herdeiro político do pai (último dos Augustos a chefiar o
poder local por várias décadas, pois após a decadência política de Raimundo
Augusto, que somente aconteceria na segunda metade dos anos 1970, um Augusto voltaria
a ocupar a prefeitura local somente em 2012, na pessoa de Gustavo Augusto Lima Trineto,
o Tavinho). Pela oposição o derramamento de sangue foi maior, pois foram
homicidados, José Leite Filho, o Zezinho, que era filho de Zé Leite e genro do
coronel Gustavo; Simplício Augusto Leite, igualmente filho de Zé Leite e ainda
o major Euzébio Tomas de Aquino, sobrinho de Pombinha e Fideralina.
Coube a um dos filhos de Eusébio, Raimundo Augusto
de Aquino, conhecido por Raimundo de Eusébio, praticar o desfecho final dessa
história de ira e sangue entre parentes. Como consequência direta do Dia do Barulho,
Raimundo de Eusébio, em 28 de janeiro de 1923, às vinte e uma horas, em plena
praça do Ferreira, Fortaleza, dentro do chamado bonde do oiteiro, em frente ao
então bar da Gruta, assinou a tiros de revólver o coronel Gustavo, então em
companhia de duas de suas filhas, quem veio a falecer dias depois ainda em
Fortaleza (CALIXTO JÚNIOR, 2017). Registra MACEDO (1990) que ao perceber o
ataque, coronel Gustavo adiantou-se ao seu agressor de braços abertos, no gesto
de proteção de suas filhas, numa prova final do caráter destemido que tanto o
marcaram.
Somente assim teve fim a guerra surreal no seio da
mesma família, tornada possível apenas graças à força e lealdade dos cabras,
figuras tão importantes para a história do Cariri naqueles tempos.
Não houve tentativa de vingança à morte de
Gustavo, mas seu filho Raimundo Augusto seguiu na liderança do clã por pelo
menos mais cinquenta anos.
6.
CONCLUSÕES
O
fenômeno social do cangaço possui várias formas. No interior do Ceará a mais
difundida delas é a dos chamados cabras,
homens que viviam sob a proteção dos coronéis, grandes latifundiários que eram,
servindo-lhes nas lidas do campo em tempos de paz e como soldados em épocas de
guerra.
Foi graças à valentia desses homens rudes e fiéis
que se ergueu e sustentou o coronelismo, notadamente na região sul do Ceará, ou
Cariri. Através desses cabras, esses poderosos se sustentaram no poder, mas
também depuseram seus adversários, como igualmente foram depostos pelos
inimigos.
Chegou a tal ponto esse potentado, que na fase área
desse período, foram capazes de tomar o poder no Estado, no episódio conhecido
como a Sedição de Juazeiro. Os grandes líderes desse movimento e mesmo os
maiores símbolos do poder local na época, são sem dúvidas padre Cícero Romão
Batista e a Floro Bartolomeu da Costa, seu alter ego político. Mas não é
possível conhecer a verdadeira dimensão desse período sem o estudo da singular
figura de Fideralina Augusto Lima e seu herdeiro político e filho, coronel
Gustavo Augusto Lima, que se sagrou líder ainda mais destacado que o próprio
Floro Bartolomeu na deposição de Franco Rabelo em 1914.
7.
REFERÊNCIAS
CALIXTO JÚNIOR, João Tavares.
Considerações Sobre a Invasão de Lavras em 1910. 2ª Ed. Expressão Gráfica e
Editora. Fortaleza. 2017.
CAVA, Ralph Della Cava. Milagre em Joazeiro.
Companha das Letras. São Paulo. 2014.
COUTO, Cristina. A Tragédia de Princesa. O
caso Ildefonso de Lacerda Leite. Expressão Gráfica. Fortaleza. 2018.
GONÇALVES, Rejane Monteiro Augusto. MACEDO,
Joaryvar. Os Augustos. ABC Editora. Fortaleza. 2009.
MACEDO, Dimas. Dona Fideralina Augusto.
Mito e Realidade. Armazém da Cultura. Fortaleza. 2017.
MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte.
UFC. Cada de José de Alencar. Programas Culturais. Fortaleza. 1990.
NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e
guerra no sertão. Companhia das Letras. São Paulo. 2009.
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre
Cícero e a Revolução de 1914. 2ª Ed. IMEPH. Fortaleza. 2011.