NAQUELE
DIA, O AMOR
CONTO
A grandeza do mar quase não combinava com a
quietude externa daquele momento. Praia deserta. Maré em vazante. Sol a pino. O
barulho uníssono e calmoso das águas indo e vindo mansamente, sem pressa, ensaiando
apenas a agitação das ondas tumultuosas da próxima maré, quase esquecidas da
força que demonstraram não faz muito. Tudo aguardava, sem pressa ou qualquer
espécie de agitação a atração do poder lunar que dali a algumas horas
modificaria completamente aquele ambiente, em um devir a mais da infinita
passagem da eternidade. Tudo aquilo era um grão de areia, apenas, na
inimaginável imensidão do universo.
Ele, o nosso personagem sem nome e até aqui sem
história conhecida, a tudo observava completamente inserido na energia do
ambiente que integrava. Sentia em cada batida do coração o mesmo ritmo e a
mesma calma das pequenas ondas que iam e vinham. Era como sua própria vida, que
após tumultuária preamar regozijava-se com a calmaria do arrefecimento das
ondas. Assim permaneceu pelo tempo que pôde. Pretendendo viver ao máximo aquela
quietação já tão rara em sua vida.
Ao longe vislumbrou que se aproximava uma figura.
De início disforme. Um caminhante lento, aparentemente desprevenido, que por sua
postura passiva diante da paisagem em nade destoava dela. Aos poucos se
apercebeu que se tratava de um senhor bem avançado na idade. Não caminhava
propriamente com calma, mas com agoniante dificuldade. Mas tanto insistiu que
aos poucos veio se aproximando do outro homem sentado à sombra. Não passou
direto por ele. Aproximou-se de onde estava e sem dizer palavra, com natural
dificuldade sentou-se a seu lado.
Nenhum cumprimentou ou estranhou ao outro. Nunca
dantes haviam se encontrado, mas já se conheciam relativamente bem.
Simplesmente se quedaram absortos na paisagem, se alimentando da mágica energia
do momento. A eternidade lhes habitou por aquele instante.
Completamente adaptados um à presença do outro,
sem qualquer questionamento sobre as razões daquele insólito encontro, o mais
velho iniciou sua parlamentação. Com calma e firmeza. Convicto de cada uma das
palavras que pronunciou. Sabe, seu tonto, começou dizendo sem constrangimentos,
foram as leituras que te tornarão esse ser decrépito, quiçá desprezível em quem
me tornei. A filosofia pretende descobrir a tudo, compreender as razões últimas
de todas as coisas. Esmiúça os meandros mais inalcançáveis da racionalidade
humana, mas segue absolutamente míope aos sentimentos. As ciências em geral
desvelam as minúcias dos movimentos dos astros, desvendam as forças invisíveis
que comandam as relações na natureza, assim como compreendem os motivos racionalmente
egoísticos que os homens possuem para oprimir seus iguais em nome de uma
tirânica vida social. A própria democracia se transmuda numa tirania massacrante
quando impõe que uma maioria disforme e incônscia da verdadeira essência da
realidade visível e invisível da humanidade decida com sabedoria os destinos de
um povo inteiro. Essa é a tirania da ignomínia porque escraviza os bons e
oprime os sábios.
Os verbos que tua ciência exprime, continuou, são
reflexos das ações dela. Já observastes de que verbos ela se vale? Estudar,
examinar, investigar, desvendar, observar, esmiuçar, pesquisar... Todos verbos
de curiosidade. Nenhum relativo a sentimentos. Tua ciência não sabe amar, não
consegue sentir, não admite a intuição e não se convence da verdadeira essência
do homem: divina, imaterial e perfeita. Tua ciência, por exemplo, não consegue
condoer-se da miséria, apenas encerra toda a fome e sofrimento do mundo em
estatísticas. Muito menos se compadece do solitário isolamento do sucesso, advindo
da altitude inalcançável dos currículos bem sucedidos, nem da arrogância
desmedida que fazem seus protagonistas acreditarem que conhecem um pouco que
seja dos insondáveis mistérios da criação. Ah, mas todos defecam e poucos deles
amam.
Amar não é o que tu pensas que fazes. Não é
consumir os corpos jovens, cheios de belas próteses, que tentam imitar uma
beleza verdadeiramente inalcançável através dos instrumentos da ciência. Amar
não é envolver-se com seguidas pessoas, sem a nenhuma delas permitir revelar
sua essência. Sua verdadeira essência, não aquela máscara cirurgicamente
esculpida pelo ego. Amar é compartilhar sentimentos, é revelar-se fraco, inculto
e terrivelmente defeituoso. Sem medo da reprovação. Amar é seguir em frente,
mas guardando no coração todos aqueles com quem já trocou esse sentimento. Não
é desprezar nem odiar por causa do abandono. O verdadeiro amor não recebe paga,
não pede troco. Ele seguirá constante independente do tanto de desassossego que
o outro tenha te causado. Ele serena o coração mesmo quando ele está solitário.
Mas de nada disso tua ciência sabe patavinas. Ela
trata é do poder. Não do verdadeiro poder, do que é capaz de construir o
impossível, realizar milagres ou modificar a essência de todas as coisas. Disso
ela também não entende. O poder de que trata a tua ciência é o poder dos
ímpios. Dos covardes. Dos ignóbeis. É do poder, que por ser falso, é
antagonicamente refratário do amor. Por isso que a infelicidade, o trauma, a
traição e o engodo povoam tão ricamente a academia de que fazes parte. Por isso
que a paz não te habita, que a solidão te devora e a maledicência te persegue.
Simplesmente porque nunca aprendeste a amar.
Sempre te lembres que foi em nome de tua carreira,
da benfazeja ciência que através de tantos sacrifícios aprendeste a dominar e
que tanto falso poder te legou; foi em nome da necessidade de todas essas provações
que te afastaste de tua família, olvidaste de regar o jardim florido de
abnegação que aquela jovem moça te ofereceu um dia, fazendo a tua desatenção
com que o jardim secasse e a bela flor murchasse. Porque em nome da
racionalidade cartesiana te recusaste a mergulhar na inefável lição do amor.
Por que não compreendeste desde logo que a única
verdade possível é a do amor? Por que não percebeste que a realidade está no
insólito, naquilo que não é nem sólido nem material? Que a razão é pequena
demais para compreender a verdadeira essência da vida? Por que precisaste
dedicar toda a tua juventude às armadilhas do ego, consumindo cada gotícula da
energia vital de que foste provido com jogos de poder e sedução, piamente
acreditando que assim te tornarias importante e amado?
Sabes o que restará de tudo isso? Em que dará tua
soberba? Neste velho decrépito, solitário, infeliz e desesperançado que vos
fala. Pare com tanta perversão, permita a si mesmo um futuro mais digno. Ainda
há tempo de aprender a amar...
Enfim, aquietou-se o velho, permanecendo longo tempo
em silêncio, de rosto impávido, sem expressar qualquer sentimento.
A tarde já caía num lindo laranja. A luz já
iniciava a rarear quando o velho bem devagar levantou-se e seguiu sua caminhada
na direção oposta a que viera. O homem que ficou com respeito acompanhou o
vulto o quanto pôde. Até seu vulto desaparecer no horizonte. O mar continuou
calmo, com ondas leves e lentas. Mas o silencioso coração daquele homem não.
Estava em polvorosa.
Jorge
Emicles