MÃE
DINDINHA
Acercar-se da casa grande do sítio Tatu, encravado
no coração rural da velha Lavras da Mangabeira, à primeira vista é como chegar
a uma dentre tantas centenas de milhares, de fazendas nordestinas. Tudo ali nos
parece típico. Há a casa grande centenária, de paredes grossas, confeccionadas
em tijolos de proporções descomunais para os padrões atuais. Há ao fundo o
igualmente centenário açude, que mesmo já assoreado pela antiguidade de sua
construção ainda é plenamente hábil em salvar os moradores e a criação local da
medonha estiagem que ciclicamente afeta toda a região do nordeste brasileiro.
Há os baixios, ao lado, que fazem brotar hoje a pastagem necessária ao sustento
das criações de bovinos e ovinos, que, porém, não guardam mais os vestígios da
antiga produção de cana-de-açúcar anualmente moída e transformada em rapadura
no velho engenho. O engenho mesmo se identifica por um amontoado de engrenagens
enferrujadas, já a descampado, porque o prédio que guarnecia a ferragem já não
existe mais, destruído que foi pela quase criminosa ação do tempo, que não
deixa nunca guardar a eternidade dos momentos de alegria ou enfado, quando
perdidos no negrume obscuro do passado.
Não se guardaram, muito menos, pistas valiosas de
o que se desenrolava por ali há cem anos apenas. Não fosse pelo relato oral dos
descendentes, por exemplo, não seríamos capazes de reconhecer que a indústria
que mais prosperou naquele pitoresco, aprazível e bucólico lugar, onde o
silêncio reina soberano, convidando aos visitantes, senão a alguns momentos de
contemplação diante da paisagem, por certo a um relaxante banho nas águas do
velho açude, o que faria qualquer de nós absolutamente inocente da verdadeira
seara que se colhia das entranhas daquela terra: a carne humana, negra e
sofrida da escravidão. Era essa, afinal, a principal produção da gigantesca
indústria oligárquica que se instalou na velha Lavras, maestralmente comandada inusitadamente
por uma mulher. Não, contudo, por uma qualquer. Afinal, a cultura coronelista
instalada no sertão não estaria nem um pouco disposta a gentilmente ceder o
poder do jugo; a fortaleza do bacamarte e a autoridade do patriarcado a uma
mulher, fosse esta quem fosse.
Para a história, esta mulher fez-se conhecer como
a velha Fideralina Augusto Lima, matriarca de uma populosa família e maior de
todas as expressões políticas de sua terra, sombreando inclusive vultos
históricos regionais e nacionais como os de Bárbara de Alencar e Anita Garibaldi.
Sua autoridade igualmente é reconhecida pela importância em relevantes
passagens históricas da região sul cearense, como em face de sua íntima amizade
com o Padre Cícero, de Juazeiro, sua contribuição para a atestação científica
do milagre da hóstia (foi seu filho e médico Ildefonso uma das autoridades
científicas que deram atestado da veracidade do acontecimento), sua
indispensável participação nos fatos que
desembocaram na revolução de 1914, com a consequente derrubada do presidente do
Estado, movimento que sagrou outro filho seu, Gustavo, como vice-presidente do
Estado, para ciúmes e desgraça da astuta raposa que era Floro Bartolomeu.
Também soube resistir, pelo prestígio ou pela bala, a todas as tentativas de
destituí-la do soberano poder simbólico que sempre exerceu na região, mas igualmente
em todo o Estado. Mais que em outros casos, o poder da velha matriarca era
sobretudo simbólico, porque cargos públicos mesmo ela jamais os exerceu, muito
embora sempre tenha tido a primazia da influência na nomeação de seus
ocupantes.
A horda de seus maiores adversários políticos é
composta quase sempre por sua própria parentela. Seja oriunda da irmã de sangue
conhecida em família simplesmente como Pombinha, seja proveniente de seu
próprio filho Honório, é do sangue dos Augusto que ela teve as mais severas
resistências. A questão chegou ao cúmulo de ela haver determinado a deposição
do filho Honório da chefia do partido governista a bala, através de cabras por
ela muito bem armados e comandados pelo seu sempre fiel escudeiro, o filho
Gustavo Augusto Lima, depois da mãe a maior liderança política de sua terra.
Fez isso, contudo, não sem uma severa advertência a seus cabras, a de que quem
porventura arrancasse sangue de Torto (como chamava a velha a seu filho
Honório) pagaria com a própria vida. Esse inusitado fato nos prova que antes da
grande líder política, era um coração de mãe que batia no peito daquela valente
mulher.
Um historiador que contemple a velha casa do Tatu,
em seus corredores hoje vazios pressentirá por certo a velha matrona a dar
ordens a seus cabras, a dirigir os trabalhos da casa e da propriedade toda, a
tomar conta de seus prepostos, a articular o futuro político de sua terra,
através das inúmeras e firmes alianças que sempre fez com os coronéis
regionais. Também encontrará semelhanças entre a casa grande do Tatu e a
fortaleza de Maria Moura, personagem principal do derradeiro romance da imortal
Rachel de Queiróz, reconhecidamente inspirada na velha Fidera.
Para a sua descendência, como é o nosso caso, o que
vemos ao chegarmos à velha propriedade são, primeiro, as lembranças de criança,
quando inocentes corríamos sob os domínios da velha matriarca, sem nos darmos
conta das inusitadas refregas que já se deram por ali. Sem saber, éramos descendentes
das riquezas que a escravidão gerou e do convencimento que o bacamarte impôs.
Tudo isso bem regado a bastante sangue, seja de forasteiros, seja dos próprios
membros da família. A verdade é que a família Augusto ainda não conseguiu se
libertar totalmente da herança de violência dos tiranetes. Em seguida, as novas
gerações dos Augusto eram informadas da imponência histórica de sua
ascendência. Apesar da quase inexistência de vestígios, aquele velho sítio Tatu
já foi o centro do mundo. Mundo comandado por uma mulher, que por sua realeza
se encontrava acima de todos os homens, possuía o domínio sobre todas as armas
e sobre todas as vontades de tantos quanto a cercavam. Era mandona, porém,
sempre maternal com sua descendência. Chegou a aparar alguns netos em seu
nascimento, e por toda a parentela era carinhosamente chamada de mãe Dindinha. Não descendíamos,
portanto, da “coronela” de saias Fideralina, pois quem nos guardava em nossas
brincadeiras de criança sempre foi a mãe
Dindinha, mulher misteriosa, de imenso poder simbólico, que havia escondido
uma botija cheia de ouro, a qual geração após geração seus descendentes
procuram, mas que permanece encantada. A mesma mãe Dindinha que construiu o açude para toda a descendência, cuja
fé era tão inabalável, que em certa ocasião, quando uma tempestade ameaçava
arruinar a parede do reservatório, passou toda uma noite orando, pegada em seu
rosário, para obter a preservação de sua construção, no que foi atendida pelos
céus. Conhecíamos sim, a avó zelosa, que inconformada pela injusta morte do
neto, em Princesa da Paraíba, mandou invadir o lugarejo para vingar o mal
feito, tendo determinado a seus cabras que de cada homem abatido lhe fosse
trazida uma orelha, tendo daí começado a decantada história de seu famoso
rosário de orelhas, com o qual regularmente teria proferido suas orações.
Para além dessas carinhosas lembranças, embebidas
tantas vezes na fantasia da meninice, nas lembranças da oralidade repassada por
pessoas que não mais se encontram nesse plano e pelas lendas mesmo difundidas
por diversas gerações a respeito de quem teria de fato sido essa inesquecível
mulher, devoramos com imensa alegria a biografia da velha matrona recentemente lançada
pelo ilustre jurista, escritor, poeta e historiador Dimas Macedo. Justa
reverência que a história faz à imensidão dessa grande mulher; belo e
criterioso trabalho que somente poderia ter nascido da grandiloquência de uma
mente como a do culto Dimas Macedo.
Jorge
Emicles