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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

MÃE DINDINHA



                   Acercar-se da casa grande do sítio Tatu, encravado no coração rural da velha Lavras da Mangabeira, à primeira vista é como chegar a uma dentre tantas centenas de milhares, de fazendas nordestinas. Tudo ali nos parece típico. Há a casa grande centenária, de paredes grossas, confeccionadas em tijolos de proporções descomunais para os padrões atuais. Há ao fundo o igualmente centenário açude, que mesmo já assoreado pela antiguidade de sua construção ainda é plenamente hábil em salvar os moradores e a criação local da medonha estiagem que ciclicamente afeta toda a região do nordeste brasileiro. Há os baixios, ao lado, que fazem brotar hoje a pastagem necessária ao sustento das criações de bovinos e ovinos, que, porém, não guardam mais os vestígios da antiga produção de cana-de-açúcar anualmente moída e transformada em rapadura no velho engenho. O engenho mesmo se identifica por um amontoado de engrenagens enferrujadas, já a descampado, porque o prédio que guarnecia a ferragem já não existe mais, destruído que foi pela quase criminosa ação do tempo, que não deixa nunca guardar a eternidade dos momentos de alegria ou enfado, quando perdidos no negrume obscuro do passado.
                   Não se guardaram, muito menos, pistas valiosas de o que se desenrolava por ali há cem anos apenas. Não fosse pelo relato oral dos descendentes, por exemplo, não seríamos capazes de reconhecer que a indústria que mais prosperou naquele pitoresco, aprazível e bucólico lugar, onde o silêncio reina soberano, convidando aos visitantes, senão a alguns momentos de contemplação diante da paisagem, por certo a um relaxante banho nas águas do velho açude, o que faria qualquer de nós absolutamente inocente da verdadeira seara que se colhia das entranhas daquela terra: a carne humana, negra e sofrida da escravidão. Era essa, afinal, a principal produção da gigantesca indústria oligárquica que se instalou na velha Lavras, maestralmente comandada inusitadamente por uma mulher. Não, contudo, por uma qualquer. Afinal, a cultura coronelista instalada no sertão não estaria nem um pouco disposta a gentilmente ceder o poder do jugo; a fortaleza do bacamarte e a autoridade do patriarcado a uma mulher, fosse esta quem fosse.
                   Para a história, esta mulher fez-se conhecer como a velha Fideralina Augusto Lima, matriarca de uma populosa família e maior de todas as expressões políticas de sua terra, sombreando inclusive vultos históricos regionais e nacionais como os de Bárbara de Alencar e Anita Garibaldi. Sua autoridade igualmente é reconhecida pela importância em relevantes passagens históricas da região sul cearense, como em face de sua íntima amizade com o Padre Cícero, de Juazeiro, sua contribuição para a atestação científica do milagre da hóstia (foi seu filho e médico Ildefonso uma das autoridades científicas que deram atestado da veracidade do acontecimento), sua indispensável participação nos fatos  que desembocaram na revolução de 1914, com a consequente derrubada do presidente do Estado, movimento que sagrou outro filho seu, Gustavo, como vice-presidente do Estado, para ciúmes e desgraça da astuta raposa que era Floro Bartolomeu. Também soube resistir, pelo prestígio ou pela bala, a todas as tentativas de destituí-la do soberano poder simbólico que sempre exerceu na região, mas igualmente em todo o Estado. Mais que em outros casos, o poder da velha matriarca era sobretudo simbólico, porque cargos públicos mesmo ela jamais os exerceu, muito embora sempre tenha tido a primazia da influência na nomeação de seus ocupantes.
                   A horda de seus maiores adversários políticos é composta quase sempre por sua própria parentela. Seja oriunda da irmã de sangue conhecida em família simplesmente como Pombinha, seja proveniente de seu próprio filho Honório, é do sangue dos Augusto que ela teve as mais severas resistências. A questão chegou ao cúmulo de ela haver determinado a deposição do filho Honório da chefia do partido governista a bala, através de cabras por ela muito bem armados e comandados pelo seu sempre fiel escudeiro, o filho Gustavo Augusto Lima, depois da mãe a maior liderança política de sua terra. Fez isso, contudo, não sem uma severa advertência a seus cabras, a de que quem porventura arrancasse sangue de Torto (como chamava a velha a seu filho Honório) pagaria com a própria vida. Esse inusitado fato nos prova que antes da grande líder política, era um coração de mãe que batia no peito daquela valente mulher.
                   Um historiador que contemple a velha casa do Tatu, em seus corredores hoje vazios pressentirá por certo a velha matrona a dar ordens a seus cabras, a dirigir os trabalhos da casa e da propriedade toda, a tomar conta de seus prepostos, a articular o futuro político de sua terra, através das inúmeras e firmes alianças que sempre fez com os coronéis regionais. Também encontrará semelhanças entre a casa grande do Tatu e a fortaleza de Maria Moura, personagem principal do derradeiro romance da imortal Rachel de Queiróz, reconhecidamente inspirada na velha Fidera.
                   Para a sua descendência, como é o nosso caso, o que vemos ao chegarmos à velha propriedade são, primeiro, as lembranças de criança, quando inocentes corríamos sob os domínios da velha matriarca, sem nos darmos conta das inusitadas refregas que já se deram por ali. Sem saber, éramos descendentes das riquezas que a escravidão gerou e do convencimento que o bacamarte impôs. Tudo isso bem regado a bastante sangue, seja de forasteiros, seja dos próprios membros da família. A verdade é que a família Augusto ainda não conseguiu se libertar totalmente da herança de violência dos tiranetes. Em seguida, as novas gerações dos Augusto eram informadas da imponência histórica de sua ascendência. Apesar da quase inexistência de vestígios, aquele velho sítio Tatu já foi o centro do mundo. Mundo comandado por uma mulher, que por sua realeza se encontrava acima de todos os homens, possuía o domínio sobre todas as armas e sobre todas as vontades de tantos quanto a cercavam. Era mandona, porém, sempre maternal com sua descendência. Chegou a aparar alguns netos em seu nascimento, e por toda a parentela era carinhosamente chamada de mãe Dindinha. Não descendíamos, portanto, da “coronela” de saias Fideralina, pois quem nos guardava em nossas brincadeiras de criança sempre foi a mãe Dindinha, mulher misteriosa, de imenso poder simbólico, que havia escondido uma botija cheia de ouro, a qual geração após geração seus descendentes procuram, mas que permanece encantada. A mesma mãe Dindinha que construiu o açude para toda a descendência, cuja fé era tão inabalável, que em certa ocasião, quando uma tempestade ameaçava arruinar a parede do reservatório, passou toda uma noite orando, pegada em seu rosário, para obter a preservação de sua construção, no que foi atendida pelos céus. Conhecíamos sim, a avó zelosa, que inconformada pela injusta morte do neto, em Princesa da Paraíba, mandou invadir o lugarejo para vingar o mal feito, tendo determinado a seus cabras que de cada homem abatido lhe fosse trazida uma orelha, tendo daí começado a decantada história de seu famoso rosário de orelhas, com o qual regularmente teria proferido suas orações.
                   Para além dessas carinhosas lembranças, embebidas tantas vezes na fantasia da meninice, nas lembranças da oralidade repassada por pessoas que não mais se encontram nesse plano e pelas lendas mesmo difundidas por diversas gerações a respeito de quem teria de fato sido essa inesquecível mulher, devoramos com imensa alegria a biografia da velha matrona recentemente lançada pelo ilustre jurista, escritor, poeta e historiador Dimas Macedo. Justa reverência que a história faz à imensidão dessa grande mulher; belo e criterioso trabalho que somente poderia ter nascido da grandiloquência de uma mente como a do culto Dimas Macedo.


Jorge Emicles

quinta-feira, 2 de novembro de 2017


UMA FICÇÃO, APENAS

                   Segue a novela surrealista da terrae brasilis. Por aqui se dão acontecimentos tão inusitados, que seriam rechaçados de pronto pelo mais engenhoso dos ficcionistas. As histórias deste lugar não caberiam nos romances de Garcia Marques e seriam desprezadas até mesmo por mentes satíricas e críticas como a de Voltaire. Quem, afinal, poderia imaginar que no curso de uma cansativa, solene e vetusta sessão da Suprema Corte de um país qualquer (de uma república de bananas que seja!) coubesse uma troca de acintes entre dois majestosos, imponentes e assoberbados juízes, em que reciprocamente se acusassem de autores de crimes e reincidentes quebra do decoro, da ética e do mais miúdo cuidado com a aparência de suas ações.
                   No campo da ficção, contudo, tudo cabe. Sendo assim, exclusivamente a título de exercitar a fértil imaginação que nos habita, na talvez vã tentativa de pôr fim a esse burburinho de ideias que não para de fervilhar; na esperança de que teremos ao menos um instante de sossego se acaso ponhamos para fora tais elucubrações alucinógenas que a nós povoam; somente por este superior motivo, daremos azo à imaginação, registrando assim um sórdido e ficcional diálogo entre dois juízes superiores, acobertados pela santidade da vitaliciedade, embebidos da extrema cultura e saber que a educação formal é capaz de conceder. Em uma palavra, seria um diálogo entre duas divindades, emantadas pela eternidade de sua reluzente cultura, claramente visível pelas palavras difíceis, becas negras e brilhantes a lhes cobrir o corpo já deformado por tantas e caras guloseimas servidas insistentemente nos intervalos das cotidianas sessões de que tomam parte. Nada, enfim, que se relacione com a benfazeja terrae brasilis.
                   Claro! Nenhuma do que se dirá a seguir será verdadeira. Já dissemos e fazemos absoluta questão de reprisar: é a fútil imaginação que se permite fruir, sem qualquer compromisso com a realidade dos fatos; sem nenhuma intenção de provocar qualquer reflexão. Se trata de um simplório instrumento de aplacar a coceira de ideais maldosas que nos habitam. Somente isso, insistimos. Aliás, é de total inutilidade a transcrição desse diálogo, de tal sorte que desde já fica o preclaro leitor isento de seguir na leitura. Há coisas muito mais úteis a serem consumidas, afinal. É tão despropositado o diálogo imaginado, que nem mesmo os respeitáveis juízes, fruto exclusivo de nossa imaginação, nem eles mesmo teriam incentivo a continuar a leitura, preferindo certamente os volumosos tomos do Tratado de Pontes de Miranda ou, quiçá, a moralista obra do insubstituível Nelson Hungria. Jamais, contudo, a leitura a seguir alinhavada.
                   De toda sorte, mesmo ciente da inocorrência de leitores para o que teimosamente queremos dizer, ainda assim segue emantado em nossa mente a figura dos dois juízes, sentados ao redor de uma espécie de balcão enorme, em formato de “U” e também ocupado por outros parceiros. Todos taciturnos, escondendo o desagrado e a surpresa pelo inusitado diálogo de inopino ocorrido. Na verdade, estavam inicialmente a tratar de assuntos sérios, dignos de sua autoridade e de tal importância que os fizeram se dignar a conceder uma pequena fração da eternidade de seus seres imortais a tais elucubrações. O assunto da pauta não vem bem ao caso, vez que a discussão nasceu de coisas colaterais, de conflitos passados, que se bem analisados teriam a inveja, o rancor e o ego como causas primeiras (nessa passagem não podemos deixar de reconhecer o absurdo da ideia de atribuir a seres tão superiores, dignos da imortalidade, como são os juízes, a mesquinhez de sentimentos tão baixos como os enunciados. Ao leitor que esteja resistindo ao insólito da cena proposta antes de abandonar por definitivo a difícil tarefa de ser nosso leitor, nos desculpamos dizendo que tudo é como se nos apresentou a imaginação. Não nos responsabilizamos pelo que essa mente pecaminosa com a qual a Criação nos legou é capaz de gerar!). Então apenas para contextualizar, diremos que discutiam a importante questão de verificar se é acorde à Constituições daquele país uma lei que extinga uma controladoria de contas, o que de novo põe à evidência o absurdo de nossa imaginação, afinal por que razões algum órgão público inevitavelmente deveria ser eterno, de extinção proibida? Ah, esta ideia de questionar o poder do Estado de criar e extinguir seus órgãos sem dúvidas pôs a remexerem-se em suas sepulturas gigantes do direito, como Kelsen, Montesquieu e Hobbes. (Aos seculares mestres, nossas escusas!)
                   Neste passo, quando todos os presentes, por detrás da solene aparência de respeito à fala do juiz que monopolizava, pela vez, a palavra; atitude que na verdade escondia o tédio infinito que se abatia contra os presentes, forçados ainda assim a manter a aparência de uma atitude atenciosa e interessada diante do discurso proferido. Talvez cansado de inopino (aparente, insistimos, pois que seres alados não praticam atitudes inopinadas) um outro juiz, que pelo adiantado da hora temia seriamente perder um encontro previamente agendado, quebrando o protocolo da corte, assacou a seguinte interpelação:
                   - Vossa excelência tanto fala do meu estado natal mas, creio, deveria estar falando do vosso estado, onde todos os seus amigos poderosos estão presos!
                   - Ledo engano, excelência, redarguiu o juiz interrompido. Falo do vosso estado mesmo. Acaso lá também os vossos amigos não estão presos?
                   - De fato, nós prendemos, mas há gente que solta!
                   - Solto-os, excelência, porque defendo os direitos fundamentais, garantidos por esta Constituição que nos empodera a todos. É vossa excelência quem advoga e solta bandidos internacionais, não eu.
                   - Ora, vossa excelência falta com a verdade. Aliás, não costuma mesmo trabalhar com a verdade. (Neste passo, nossa teimosa imaginação interpõe o seguinte pensamento na cabeça do juiz, dito de si para si mesmo, pois tal seria demais reproduzir em voz alta: esse canalha mentiroso, amigo dos verdadeiros criminosos e que a olhos claros trabalha pela manutenção do estado de crimes em que vivemos. Este é um verdadeiro filho.... Ah, caríssimo leitor, aqui fomos longe demais, pois, claro, nenhum juiz imortal e portador da sabedoria e cultura eternos, legado final de todas as genialidades produzidas pela raça humana, será jamais capaz de pronunciar um palavrão, nem nos momentos de maior engaste. Perdoe a impertinência dessa devassa imaginação que temos! Perdoe-nos!). Vossa excelência, continuou o juiz em voz alta, pratica evidente leniência com crimes de colarinho branco, isto sim.
                   - Ah, insisto, mas não sou eu que advogo para criminosos internacionais. Não fui eu que pus em liberdade um réu condenado por este tribunal por crime do colarinho branco, convenhamos!
                   - O que vossa excelência faz, é mudar a jurisprudência de acordo com o réu. Se for seu inimigo, condena. Se amigo, absolve. Vossa excelência confunde um estado de direito com um de compadrio. Juiz não pode ter correligionários. Não faça deste plenário um comício. Pare de destilar tanto ódio!
                   - Eu, destilador de ódio? Será por acaso que vossa excelência está a agir com amor?
                   A esta altura, o constrangimento era geral e insuportável, a ponto de a presidente da corte se ver obrigada a tomar a palavra e advertir:
                   - Excelências, estamos no meio de um julgamento pela suprema corte. Cuidado com o que falam. Tudo fica registrado nos anais. Encerremos essa discussão paralela e retomemos o julgamento indevidamente interrompido. Ministro Fulano, a palavra estava com vossa excelência. Por favor, continue vosso raciocínio...
                   E assim, tal qual iniciou-se sem aviso, a discussão foi sumariamente interrompida. A imaginação nos informa que, com tal advertência, os juízes voltaram a si, compreendendo a perigosa situação em que se envolveram, acusando-se mutuamente de ilícitos de diferentes naturezas, em ambiente público. No mínimo o episódio seria repercutido na imprensa, que certamente produziria algum artigo ou editorial crítico, reclamando pela apuração das denúncias recíprocas. Claro que isso não redundaria em qualquer punição, pois os deuses não podem ser punidos pelas suas indisciplinas (Maquiavel diria que o príncipe não comete crimes, pois o Estado, que é o próprio príncipe, não pode ser criminoso). De qualquer forma, haveria mal-estar geral, quem sabe alguma manifestação com arremesso de tomates contra os juízes da corte. Algo inconveniente, sem dúvidas. Pior (pensou um dos ministros que tinha em sua discoteca privada toda a coleção de Chico Buarque, e venerava os poemas de Drummond) vai que algum poeta inoportuno cria uma ficção desde este diálogo, denunciando para a história o ridículo em que nos metemos!
                   Depois de feito o que não deveria, somente o silêncio para deixar no passado o que jamais poderia ter sido no presente. Todos ao redor colaboraram, mantendo a mesma cara de concentração, relevância e sabedoria das palavras ditas. Suas faces compenetradas quase diziam em voz alta como eram sábios os imortais juízes de nossa suprema corte. Um país com juízes desse quilate inevitavelmente está fadado ao sucesso econômico e à liderança do mundo civilizado. Homero teria profundo orgulho, se conhecesse nossa superior cultura! Viva a Suprema Corte da terrae brasilis! (opa! novamente desculpamo-nos ante o leitor. É um crasso erro de digitação esse, pois o país de que falamos não é o Brasil. Com convicta certeza, não é!)
                   Ao final da sessão, a presidente chamou aos dois juízes em seu gabinete e lhes admoestou, com o devido respeito e prudência diante de suas imortalidades, no sentido de que deveriam ter cuidado com entreveros daquela estirpe, pois aquilo custava o quase inabalável prestígio do tribunal. Os distintos colegas, advertiu, tinham todo o sagrado direito de se odiarem (afinal, o panteão grego é repleto de histórias de deuses que se engalfinham pelas mais diversas razões). Mas, em público, estavam obrigados a manter a aparência de união da corte. Era um sacrifício necessário à boa ordem dos trabalhos.
                   Dito assim, tudo foi resolvido e superado. Cada qual voltou-se a seus compromissos sociais, retomando a rotina de sempre com suas famílias, correligionários e amantes. Como se nada anormal houvesse acontecido.
                   (Neste ponto preciso, queremos pregar uma peça à nossa imaginação. O raciocínio lógico que herdamos de Descartes nos informa que presente na sessão estava o Procurador da República, que por lei está obrigado a processar todo e qualquer a quem saiba ter cometido qualquer ilícito, pois ensinam as centenas de compêndios de direito penal disponíveis no lucrativo mercado jurídico, que a ação penal é indisponível e o ministério público seu natural e irrecusável titular. Eis a figura moderna do carrasco, sempre a postos para buscar sanção contra os criminosos da mais diversa ordem. Nem o presidente da república poderia escapar de seu julgo, veja-se o tamanho de seu poder! Também esta mesma racionalidade kantiana nos lembrou que a lei processual penal daquele país fictício [que não se chama terrae brasilis, insistimos!] determina que sempre que um juiz tiver ciência do cometimento de qualquer crime, está obrigado a mandar apurar o ilícito [suponhamos, então e apenas para arrastarmos a famigerada imaginação que possuímos à armadilha final, que na lei do referido país, mais especificamente no artigo 40 de seu Código de Processo Penal houvesse o seguinte enunciado: “quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”]. Logo, nossa imaginação foi aí pega no contrapé, porque simplesmente é impossível – não apenas absurda – a história por ela imaginada. Os juízes briguentos obrigatoriamente sofreriam o constrangimento de uma investigação, porque mesmo que a presidente daquela corte hipotética não adotasse as providências impostas pelo seu dever, quaisquer dos outros juízes presentes o fariam, e mesmo o procurador estaria obrigado a fazê-lo. Aliás, qualquer juiz nacional que tivesse conhecimento do fato estaria legalmente obrigado a requisitar a investigação).
                   E ponto final! Demos enfim o xeque-mate à nossa intempestiva imaginação!
                   Inoportunamente, no entanto, a danada não se deixou vencer. Insistiu em apresentar na nossa tela mental a imagem da leniente camaradagem de uns com os outros, sem qualquer risco de punição. Apresentou-nos a sessão seguinte daquele tribunal (graças ao bom Deus, um tribunal hipotético) onde sorridentes todos seguiam em sua rotina, sem preocupação alguma, como se sem memória já do insólito acontecimento. O procurador seguia presente em todas as sessões seguintes, sem que ninguém o importunasse a respeito de que medidas investigativas haveria adotado. Todos os juízes nacionais (incluindo, por óbvio, os da corte) seguiram em suas carrascas sentenças de condenação dos pobres, negros e perseguidos, sem qualquer constrangimento diante de sua corte suprema. Sem jamais ousar indagar de que lado se estaria cometendo o pior dos crimes (se dentro ou fora das vetustas togas). E simplesmente a vida seguiria sem novidades até o próximo entrevero ciumento entre outros dois membros da corte, o qual repercutiria por alguns dias nos jornais e outra vez cairia no silêncio hipócrita da conveniência.
                   Vez que não pudemos nesse embate vencer a teimosia dessa insana imaginação que nos povoa, deixemos a história como ela a delimitou. Ainda bem, contudo, que se trata de uma singela e desnecessária ficção, que em nada engrandece a sabedoria e imortalidade dos nossos juízes. Nada mesmo que se relacione ao amado Brasil. Ainda bem, afinal, que vivemos todos num moderno e próspero estado democrático de direito, guiados por uma sólida e inabalável constituição dirigente, cada vez mais próximos da plenitude da felicidade coletiva! É deveras uma graça superior possuirmos iluminados constitucionalistas que ensinam essas superiores verdades aos nossos diligentes estudantes de direito, que a partir da retidão dessa formação se tornam sagazes advogados, iluminados promotores e imortais juízes. Um milhão de vivas por isso e tudo o mais que nos legou Canotilho e Bonavides. Infinitas graças pelas valiosas e gigantescas obras de Gilmar Mendes e Roberto Barroso. Que seríamos sem seu legado de sabedoria e coerência?
                   Que bom, que tudo foi apenas uma surreal ficção! Ufa!

Jorge Emicles