A
VERDADE LIBERTA
Na
sequência inesgotável de fatos que marca a profunda crise institucional
brasileira, chegou a vez de o Supremo Tribunal Federal dar seu lance no
tumultuado xadrez da política nacional. Afinal, seria mesmo ingênuo adjetivar
por outra expressão diferente de política
a natureza da decisão na ação direta de inconstitucionalidade que, na prática,
abriu as porteiras para a anistia não apenas de Aécio Neves como de dezenas de
outros grandes caciques.
Vejamos se não é realmente isso:
A ação propriamente foi ajuizada quando o mesmo
STF suspendeu o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha não
apenas do poderoso cargo que ocupava, mas também do próprio exercício do
mandato. Foi inclusive denunciado porque houvera adentrado nas dependências do
congresso durante a vigência da medida. Para tanto, não se cogitou em pedir
licença à respectiva casa para dar efetividade à medida.
Inconformados com o fato, dois partidos aliados ao
então Presidente da Câmara dos Deputados, ajuizaram a dita ação direta da
inconstitucionalidade, que essencialmente pretendia a declaração parcial de
inconstitucionalidade do artigo do Código de Processo Penal que autoriza ao
juiz de direito a determinação de medidas cautelares que restringem o exercício
de certos direitos aos réus e investigados em geral. No caso específico,
pretendiam que o STF declarasse que os congressistas somente poderiam sofrer
essas medidas com a anuência de sua Casa, conforme acontece nos casos de prisão
em flagrante (na linguagem técnica, pretendiam uma interpretação da lei,
conforme à constituição).
Vez que Eduardo Cunha já estava politicamente
morto, sem aliados de peso que lhe defendessem os interesses, a ação dormitou
nos gabinetes e corredores da suprema corte desde então, sem que qualquer
esforço fosse tomado no sentido de agilizar o trâmite e conclusão da ação, como
é o costume e regra das ações que correm nos tribunais de todo o nosso
continental país. Assim foi e seguiria sendo, não houvesse o senador Aécio
Neves sofrido mais este revés em sua combalida carreira política, é dizer: ter
o seu mandato suspenso pela aplicação da famigerada medida cautelar expedida
por uma das turmas do Supremo.
Diante da resistência dos senadores e para conciliar
os interesses dos envolvidos, após reunião reservada com o presidente do Senado
Federal, milagrosamente a Presidente do STF põe em pauta a dita ação direta da
inconstitucionalidade, que convenientemente poderia dar uma resposta política
ante a crise instalada. Ninguém em sã consciência poderia concluir algo
diferente diante da sequência dos fatos como se deram. Tanto assim é que, em
harmonia com o decidido, o senado também adiou sua apreciação em plenário a
respeito do imbróglio.
Os erros do Supremo, entretanto, não se resumem a
ceder às conveniências da política, em detrimento da suposta efetividade de um
direito. A gênese de seus pecados é bem anterior (e se fôssemos mais a fundo na
questão, sem dúvidas chegaríamos à data de sua fundação, ainda sob a poeira do
golpe que inaugurou a república tupiniquim). No caso específico, a própria
decisão que suspendeu o senador do mandato já fede à inconstitucionalidade,
afinal se estaria antecipando a pena de quem sequer réu virou ainda. Por dever
de coerência, é preciso dizer que a Constituição brasileira assegura a todos a
presunção de inocência, de tal sorte que por princípio jamais será lícito a
antecipação de punições. As medidas cautelares previstas no Código de Processo
Penal somente estarão em acordo com a Constituição (e somente assim serão
válidas) quando forem inevitáveis para impedir o cometimento de novos crimes,
para evitar a fuga do criminoso ou mesmo para garantir a ordem social. É
hipocrisia do Supremo dizer que o senador em questão estaria envolto em
quaisquer dessas circunstâncias.
Compreende-se que causa um certo embrulho no
estômago pensar que o senador terá que se beneficiar de um longo, quase eterno,
processo judicial antes de vir a ser efetivamente apenado, correndo o natural e
provável risco de ter a pretensão de punir prescrita bem antes disso, mesmo
diante das contundentes provas que se apresentaram contra o mesmo. Mas o
problema aí não está na presunção de inocência, mas na injustificável
morosidade do judiciário, notadamente dos seus tribunais superiores. A
presunção de inocência ela é necessária, representa uma garantia contra o erro
e o abuso dos juízes, tão mais comum do que se possa imaginar. Assim como ela
pode proteger um poderoso senador, também poderá ser igual antídoto contra o
abuso praticado a algum pobre preto, acusado de pequenos delitos, seja inocente
ou culpado. Fôssemos mais atentados a esse princípio, é fato, a população carcerária
do país, mão-de-obra farta e qualificada do crime organizado, certamente seria
menor do que se apresenta na realidade.
Admira a nós que o Supremo, tecnicamente a arma
criada pela Constituição para defende-la das maiorias provisórias e de
conveniência, inevitáveis na democracia, ceda ele mesmo à pressão dessa maioria
para adotar decisões claramente populistas, que agradam à mídia e tornam
famosos seus prolatores, que possuem o efeito colateral de destruir a ordem
jurídica, o estado democrático de direito e a própria ideia da soberania da
Constituição em face do conjunto do ordenamento jurídico. (Cabe lembrar que
estas ideias são a base de tudo o que se escreve a respeito de teoria do Estado
na contemporaneidade). Deveras admira que o Supremo Tribunal Federal, guardião
da Constituição Cidadã promulgada sob a batuta do velho e guerreiro Ulysses
Guimarães esteja a ser lentamente sufocada, aniquilada e profundamente
relativizada pela pena torta (ouso dizer) e também criminosa dos juízes da
Corte que lhe deveria ser a guardiã.
O que não admira é ver a indiferença clássica e
taciturna de toda a comunidade jurídica para dar cabo ao verdadeiro problema, à
genuína causa de todo o sentimento de injustiça que grassa sob a população
brasileira: por que, afinal, não se tomam providências sérias e efetivas para dar
cabo à morosidade da justiça? Por que não se institui um sistema sério e
independente de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público,
capaz de controlar e punir abusos praticados por seus membros cotidianamente,
não somente na suprema corte, como em todo o país?
O constrangimento e contradição da Presidente do
Supremo, ao proferir seu voto de desempate na sessão que julgou a malfazeja
ação direita de inconstitucionalidade, claramente revela a profunda incoerência
e falta de senso em que se encontra o judiciário de todo o país. Disse a
Ministra, em suma, que concordava inteiramente com as opiniões do relator da
ação (que negavam totalmente o poder do Congresso de rever as decisões do
Supremo), muito embora entendesse que o congresso deveria sim ter a última
palavra sobre as debatidas medidas cautelares em matéria penal. Terá isso algo
a ver com o conteúdo da conversa que a Ministra teve com o Presidente do Senado
alguns dias antes? Talvez jamais a história venha a saber.
Mas somente a verdade nos libertará (João, 8:32)!
Jorge
Emicles