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quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A VERDADE LIBERTA



                   Na sequência inesgotável de fatos que marca a profunda crise institucional brasileira, chegou a vez de o Supremo Tribunal Federal dar seu lance no tumultuado xadrez da política nacional. Afinal, seria mesmo ingênuo adjetivar por outra expressão diferente de política a natureza da decisão na ação direta de inconstitucionalidade que, na prática, abriu as porteiras para a anistia não apenas de Aécio Neves como de dezenas de outros grandes caciques.
                   Vejamos se não é realmente isso:
                   A ação propriamente foi ajuizada quando o mesmo STF suspendeu o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha não apenas do poderoso cargo que ocupava, mas também do próprio exercício do mandato. Foi inclusive denunciado porque houvera adentrado nas dependências do congresso durante a vigência da medida. Para tanto, não se cogitou em pedir licença à respectiva casa para dar efetividade à medida.
                   Inconformados com o fato, dois partidos aliados ao então Presidente da Câmara dos Deputados, ajuizaram a dita ação direta da inconstitucionalidade, que essencialmente pretendia a declaração parcial de inconstitucionalidade do artigo do Código de Processo Penal que autoriza ao juiz de direito a determinação de medidas cautelares que restringem o exercício de certos direitos aos réus e investigados em geral. No caso específico, pretendiam que o STF declarasse que os congressistas somente poderiam sofrer essas medidas com a anuência de sua Casa, conforme acontece nos casos de prisão em flagrante (na linguagem técnica, pretendiam uma interpretação da lei, conforme à constituição).
                   Vez que Eduardo Cunha já estava politicamente morto, sem aliados de peso que lhe defendessem os interesses, a ação dormitou nos gabinetes e corredores da suprema corte desde então, sem que qualquer esforço fosse tomado no sentido de agilizar o trâmite e conclusão da ação, como é o costume e regra das ações que correm nos tribunais de todo o nosso continental país. Assim foi e seguiria sendo, não houvesse o senador Aécio Neves sofrido mais este revés em sua combalida carreira política, é dizer: ter o seu mandato suspenso pela aplicação da famigerada medida cautelar expedida por uma das turmas do Supremo.
                   Diante da resistência dos senadores e para conciliar os interesses dos envolvidos, após reunião reservada com o presidente do Senado Federal, milagrosamente a Presidente do STF põe em pauta a dita ação direta da inconstitucionalidade, que convenientemente poderia dar uma resposta política ante a crise instalada. Ninguém em sã consciência poderia concluir algo diferente diante da sequência dos fatos como se deram. Tanto assim é que, em harmonia com o decidido, o senado também adiou sua apreciação em plenário a respeito do imbróglio.
                   Os erros do Supremo, entretanto, não se resumem a ceder às conveniências da política, em detrimento da suposta efetividade de um direito. A gênese de seus pecados é bem anterior (e se fôssemos mais a fundo na questão, sem dúvidas chegaríamos à data de sua fundação, ainda sob a poeira do golpe que inaugurou a república tupiniquim). No caso específico, a própria decisão que suspendeu o senador do mandato já fede à inconstitucionalidade, afinal se estaria antecipando a pena de quem sequer réu virou ainda. Por dever de coerência, é preciso dizer que a Constituição brasileira assegura a todos a presunção de inocência, de tal sorte que por princípio jamais será lícito a antecipação de punições. As medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal somente estarão em acordo com a Constituição (e somente assim serão válidas) quando forem inevitáveis para impedir o cometimento de novos crimes, para evitar a fuga do criminoso ou mesmo para garantir a ordem social. É hipocrisia do Supremo dizer que o senador em questão estaria envolto em quaisquer dessas circunstâncias.
                   Compreende-se que causa um certo embrulho no estômago pensar que o senador terá que se beneficiar de um longo, quase eterno, processo judicial antes de vir a ser efetivamente apenado, correndo o natural e provável risco de ter a pretensão de punir prescrita bem antes disso, mesmo diante das contundentes provas que se apresentaram contra o mesmo. Mas o problema aí não está na presunção de inocência, mas na injustificável morosidade do judiciário, notadamente dos seus tribunais superiores. A presunção de inocência ela é necessária, representa uma garantia contra o erro e o abuso dos juízes, tão mais comum do que se possa imaginar. Assim como ela pode proteger um poderoso senador, também poderá ser igual antídoto contra o abuso praticado a algum pobre preto, acusado de pequenos delitos, seja inocente ou culpado. Fôssemos mais atentados a esse princípio, é fato, a população carcerária do país, mão-de-obra farta e qualificada do crime organizado, certamente seria menor do que se apresenta na realidade.
                   Admira a nós que o Supremo, tecnicamente a arma criada pela Constituição para defende-la das maiorias provisórias e de conveniência, inevitáveis na democracia, ceda ele mesmo à pressão dessa maioria para adotar decisões claramente populistas, que agradam à mídia e tornam famosos seus prolatores, que possuem o efeito colateral de destruir a ordem jurídica, o estado democrático de direito e a própria ideia da soberania da Constituição em face do conjunto do ordenamento jurídico. (Cabe lembrar que estas ideias são a base de tudo o que se escreve a respeito de teoria do Estado na contemporaneidade). Deveras admira que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Cidadã promulgada sob a batuta do velho e guerreiro Ulysses Guimarães esteja a ser lentamente sufocada, aniquilada e profundamente relativizada pela pena torta (ouso dizer) e também criminosa dos juízes da Corte que lhe deveria ser a guardiã.
                   O que não admira é ver a indiferença clássica e taciturna de toda a comunidade jurídica para dar cabo ao verdadeiro problema, à genuína causa de todo o sentimento de injustiça que grassa sob a população brasileira: por que, afinal, não se tomam providências sérias e efetivas para dar cabo à morosidade da justiça? Por que não se institui um sistema sério e independente de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público, capaz de controlar e punir abusos praticados por seus membros cotidianamente, não somente na suprema corte, como em todo o país?
                   O constrangimento e contradição da Presidente do Supremo, ao proferir seu voto de desempate na sessão que julgou a malfazeja ação direita de inconstitucionalidade, claramente revela a profunda incoerência e falta de senso em que se encontra o judiciário de todo o país. Disse a Ministra, em suma, que concordava inteiramente com as opiniões do relator da ação (que negavam totalmente o poder do Congresso de rever as decisões do Supremo), muito embora entendesse que o congresso deveria sim ter a última palavra sobre as debatidas medidas cautelares em matéria penal. Terá isso algo a ver com o conteúdo da conversa que a Ministra teve com o Presidente do Senado alguns dias antes? Talvez jamais a história venha a saber.
                   Mas somente a verdade nos libertará (João, 8:32)!


Jorge Emicles