CARTA
DE UM BRASILEIRO
Desde quando o ufanismo nos habita? A partir de
que instante, teríamos sido invadidos pelo sentimento de superioridade a
propósito de todas as demais nações, nos fazendo crer servos de um povo altivo,
soberano e independente? Será que a partir do ventre de nossas mães carnais já
não seríamos embebidos do discurso patético do amor à pátria, do sentimento de
unidade enquanto povo e de sacrifício em nome do Estado? Pelo menos, de tenra
idade já nos ensina o hino nacional que “um filho teu não foge à luta/ nem
teme, quem te adora, a própria morte”. E em nome desse profano sentimento
nacionalista tantos dos nossos irmãos brasileiros já praticaram asneiras ignóbeis,
heroísmos patéticos e barbáries cruéis... e tantos outros já encontraram a
prematura morte nas inúteis lutas pelo poder. Mas assim também se passa com
todos os povos, de todas as nações, de todos os rincões do planeta, que desde
imemorável tempo inutilizam suas vidas e sacrificam suas mortes na defesa desse
etéreo ser sem face, cheiro ou cores que nos acostumamos a chamar por Estado.
Jamais se contabilizaram os índios assassinados
pelos colonizadores, nem os escravos torturados até a morte e nem os operários
vítimas da violência dos insalubres locais de labor, nem muito menos os
trabalhadores acometidos da mortandade bélica das centenas de favelas país
afora. Quando não foi o Estado que praticou essas mortes, as autorizou ou pelo
menos se insensibilizou por sua cúmplice omissão. Os sobreviventes desse
genocídio quase perpétuo e tolerado, quando não perpetrado pela “idolatrada”
pátria brasileira, ainda são coagidos a declarar-lhe incondicional amor. Se não
são cooptados pelos símbolos nacionais e líderes políticos, fraquejam diante do
hino cantado na abertura das partidas da copa do mundo, afinal, a mídia ensina
que cada qual de nós é “brasileiro, com muito orgulho e muito amor”!
Mas, e quantos de nós já parou para refletir a
sério a respeito de quem de fato seria esse poderoso Estado? Ou de que
propriamente se trata esse monstro? Os juristas repetem a incansável versão de
que tudo é fruto de um grande e harmonioso acordo, por onde uns se permitiram
ser dominados por outros em busca da paz e liberdade geral, acordo esse chamado
de contrato social. Os dominantes são representantes do povo, pois este
voluntariamente se fez representar pela minoritária elite econômica e política,
que governa em nome da felicidade geral de todos.
Para os historiadores e sociólogos mais sagazes,
contudo, há algo torpe e ideologizante em toda essa malbaratada história. Por
isso a verdade é que tudo é fruto de incessantes guerras, onde a elite
dominante é composta pelos sucessores dos vencedores originais e todos os
demais são os perdedores da carnificina gênese social. Não existiu o ingênuo
homem primitivo do contrato social, que estabeleceu uma unanimidade original,
mas o bárbaro, que através da guerra, dominou, estuprou e saqueou os dominados,
o que continua a fazer por intermédio dos tentáculos invisíveis do Estado. O
Estado é o pacificador dessa guerra originária, que substitui as armas pela
política, que igualmente serve para manter a mesma equação de forças original:
a elite mandando, o povo sendo dominado. Tudo através das sutis artimanhas do
direito.
A pessoa etérea, chamada de Estado, que somos
ensinados a amar, respeitar e doar nossas próprias vidas em seu favor, é na
verdade uma complexa teia de relações interpessoais, por meio da qual se mantém
e reproduz o modelo de dominação da minoria pela maioria. Essa teia de relações
é bem mais poderosa, por sinal, que o puro domínio das armas, pois acima de
tudo compreende as facetas da ideologia, mecanismo capaz de convencer que é
natural a exploração e necessário o sacrifício da maioria; coisas que a força
jamais seria capaz, convenha-se. Não se pode negar a genialidade oriunda da
vida social humana. A propósito, há estudos complexos na seara da história e da
sociologia, que desmistifica em detalhes essa evidência, como é o exemplo da
referencial obra de Norbert Elias, sequenciada por dezenas de outros geniais
pensadores.
Apesar de chocante, compreender o Estado como um
elemento de dominação ajuda a entender a intricada realidade nacional. Não se
trata, esclareçamos, propriamente de um domínio de certas pessoas, mas o fruto necessário
da intricada rede de inter-relações existente entre todos os habitantes da
sociedade (no mundo globalizado, poderíamos dizer, de todo o planeta, quase).
As relações de poder, a legitimidade da representação, a ideia de democracia e
a necessidade de instituições que personalizem o Estado são tudo isso fruto
dessa teia.
O fato é que, por esse prisma se consegue enfim apreender
que o Congresso Nacional, o Presidente da República e seu staff, e mesmo os
juízes da Suprema Corte nacional não são, nem poderão ser, nem se pretenderam
de fato a ser jamais os representantes da populaça, humilhada e derrotada pelo poder
que detém desde as mais remotas origens da história. Representam para a nação
posições que de fato não defendem e ao cabo somente pretendem manter os
privilégios que desde sempre foram titulares.
É preciso moralizar o país, mas não à custa do fim
dos supersalários do judiciário, e jamais proibindo as relações incestuosas
existentes entre políticos e empresários (as teias de relações entre a elite
política e econômica). É preciso dar combate à crise econômica não, contudo,
cortando privilégios dessas minorias, mas reformando o sistema de previdência
social e proibindo o aumento de investimentos naquilo que é tão necessário ao
desenvolvimento dos mais pobres, como a saúde e a educação. É imprescindível
enfrentar a violência urbana crescente, mas não dando emprego, educação e
dignidade às favelas, mas aumentando o rigor da lei penal, ampliando a
superlotação dos presídios e isolando os bolsões de violência dos pitorescos
bairros de elite nas grandes cidades do país.
Todas essas coisas (no sentido técnico, políticas
públicas aplicadas à nossa realidade nacional) bem mais que a maldade da elite,
que se vale desses pretextos para reforçar os laços históricos de dominação,
são atos do próprio Estado, que claramente aduz suas preferências a respeito de
quem deverá ser sacrificado nos momentos de crise. E a isso todos devemos aceder
docilmente, afinal é desde de bem jovens que somos repetidamente ensinados
sobre a importância da soberania, a inquestionabilidade a respeito da santidade
do Estado e a necessidade do sacrifício individual em defesa do interesse de
todos.
Bibliotecas inteiras já foram escritas com esses
ensinamentos. Amemos, então, sem qualquer pudor, a nossa pátria “mãe gentil”.
Jorge
Emicles