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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

SOBRE A LUCIDEZ



                   José Saramago, do alto de sua perspicaz genialidade, entre sua extensa produção literária escreveu um romance chamado Ensaio sobre a Lucidez. Em poucas linhas, trata do caso de um país fictício onde os eleitores acorrem às urnas em cumprimento a seu dever cívico, porém conscientes do verdadeiro processo eleitoral (bem mais sórdido que o revelado na estética propaganda eleitoral ou nos candentes discursos dos palanques) resolve maciçamente votar em branco. A história conta o caos que se instalou nesse país pela quebra total do sistema de democracia representativa, a pedra de toque de toda estrutura ideológica do ocidente pós-segunda grande guerra. Ainda mais que a falácia do nosso sistema político, o escritor revela a maldade da elite política, senhora das rédeas do Estado e seu descompromisso com os reais interesses da população.
                   Vendo o resultado das eleições municipais de outubro de 2016 no Brasil, foi inevitável não retomar a memória das lições, e sobretudo, dos questionamentos que o escritor português trouxe à tona com seu romance. Num país onde é condição inevitável para a eleição a qualquer cargo o exercício do abuso do poder (seja o econômico, o político ou mesmo de outras espécies), não se pode alimentar a esperança de que a saída para as crises econômica, política, cultural e, quiçá, até mesmo de identidade, venha através da realização de eleições. A corrupção no Brasil tem início na própria estruturação partidária e se entranha nas nuances mais profunda do seu Estado, de maneira que nem a substituição total de todos os ocupantes de cargos eletivos será suficiente para dar combate a suas mazelas já conhecidas publicamente.
                   A mudança precisa ser mais profunda. Do próprio modelo de Estado. É preciso conceber um Estado menos hipócrita, que para muito além de simplesmente afirmar um inteligente e racional conjunto de valores e direitos, efetivamente os pratique e efetive. Mas, antes disso, é imprescindível que a sociedade se modifique profundamente, fazendo-se responsável pela afirmação, difusão e prática desses valores que sejam verdadeiramente construtivos, que ao final requalifiquem o conceito de dignidade humana. Tal propósito ainda não será possível, porém, se antes disso não se modificarem as famílias, fortalecendo reciprocamente os laços de amor, ternura e compreensão, criando o ambiente necessário ao desenvolvimento, desde a família, mas também na própria sociedade, de todas as potencialidades do homem. Mais que tudo isso, entretanto, é necessário que cada ser humano, a partir de sua própria consciência, seja capaz de compreender que a família, a sociedade e o próprio Estado são potências coletivas de sua própria individualidade e que, portanto, é exclusivamente a partir dele mesmo, a começar pelo seu pensamento, que todas as coisas se modificam e melhoram.
                   Não há soluções mágicas e cômodas. Não existem salvadores da pátrio. Existe a consciência da realidade; a lucidez, responsabilidade e o compromisso que encadeiam o fazer humano desde o pensamento até o resultado, necessariamente perpassando pelo incansável trabalho do tornar real o novo.
                   Ver que em vários rincões do país, a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro, que a quantidade de não-votos (é dizer, as abstenções de eleitores às urnas, acrescida dos votos nulos e brancos) foi superior ao número de sufrágios do candidato eleito, de alguma forma paradoxal nos alimenta a esperança de que será possível sim, em algum dia de um futuro promissor, mas talvez ainda distante, se implementar a verdadeira mudança de que não apenas o Brasil, mas toda a humanidade estão a necessitar urgentemente.

Jorge Emicles