SOBRE
A LUCIDEZ
José Saramago, do alto de sua perspicaz
genialidade, entre sua extensa produção literária escreveu um romance chamado Ensaio sobre a Lucidez. Em poucas
linhas, trata do caso de um país fictício onde os eleitores acorrem às urnas em
cumprimento a seu dever cívico, porém conscientes do verdadeiro processo
eleitoral (bem mais sórdido que o revelado na estética propaganda eleitoral ou
nos candentes discursos dos palanques) resolve maciçamente votar em branco. A
história conta o caos que se instalou nesse país pela quebra total do sistema
de democracia representativa, a pedra de toque de toda estrutura ideológica do
ocidente pós-segunda grande guerra. Ainda mais que a falácia do nosso sistema
político, o escritor revela a maldade da elite política, senhora das rédeas do
Estado e seu descompromisso com os reais interesses da população.
Vendo o resultado das eleições municipais de
outubro de 2016 no Brasil, foi inevitável não retomar a memória das lições, e
sobretudo, dos questionamentos que o escritor português trouxe à tona com seu
romance. Num país onde é condição inevitável para a eleição a qualquer cargo o
exercício do abuso do poder (seja o econômico, o político ou mesmo de outras
espécies), não se pode alimentar a esperança de que a saída para as crises
econômica, política, cultural e, quiçá, até mesmo de identidade, venha através
da realização de eleições. A corrupção no Brasil tem início na própria
estruturação partidária e se entranha nas nuances mais profunda do seu Estado,
de maneira que nem a substituição total de todos os ocupantes de cargos
eletivos será suficiente para dar combate a suas mazelas já conhecidas
publicamente.
A mudança precisa ser mais profunda. Do próprio
modelo de Estado. É preciso conceber um Estado menos hipócrita, que para muito
além de simplesmente afirmar um inteligente e racional conjunto de valores e
direitos, efetivamente os pratique e efetive. Mas, antes disso, é
imprescindível que a sociedade se modifique profundamente, fazendo-se
responsável pela afirmação, difusão e prática desses valores que sejam verdadeiramente
construtivos, que ao final requalifiquem o conceito de dignidade humana. Tal
propósito ainda não será possível, porém, se antes disso não se modificarem as
famílias, fortalecendo reciprocamente os laços de amor, ternura e compreensão,
criando o ambiente necessário ao desenvolvimento, desde a família, mas também
na própria sociedade, de todas as potencialidades do homem. Mais que tudo isso,
entretanto, é necessário que cada ser humano, a partir de sua própria
consciência, seja capaz de compreender que a família, a sociedade e o próprio
Estado são potências coletivas de sua própria individualidade e que, portanto,
é exclusivamente a partir dele mesmo, a começar pelo seu pensamento, que todas
as coisas se modificam e melhoram.
Não há soluções mágicas e cômodas. Não existem
salvadores da pátrio. Existe a consciência da realidade; a lucidez,
responsabilidade e o compromisso que encadeiam o fazer humano desde o
pensamento até o resultado, necessariamente perpassando pelo incansável
trabalho do tornar real o novo.
Ver que em vários rincões do país, a exemplo do
que aconteceu no Rio de Janeiro, que a quantidade de não-votos (é dizer, as
abstenções de eleitores às urnas, acrescida dos votos nulos e brancos) foi
superior ao número de sufrágios do candidato eleito, de alguma forma paradoxal
nos alimenta a esperança de que será possível sim, em algum dia de um futuro
promissor, mas talvez ainda distante, se implementar a verdadeira mudança de
que não apenas o Brasil, mas toda a humanidade estão a necessitar urgentemente.
Jorge
Emicles