CONVERSAS COM A MORTE
Teus cheiros ocres não incomodam nem mais
seduzem. Tua aparência pestilenta, agora sei, é ilusória. Tu não és feia nem
terrível. És necessária. És o bálsamo das dores insanáveis; o fim do ócio da
existência; a mãe da eternidade e o recomeço da vida. Não te quero mal, como
sei que não odeias a ninguém. Simplesmente tu vens para completar o ciclo,
porque não és o início do nada, mas o fim do tudo que foi a vida extinta. És
promessa de eternidade; fé no recomeço cíclico da existência perpétua. Razão de
que tudo tem e terá sentido; devanear dos incrédulos ateus, por contigo, o sem
sentido da existência encenar seu ato derradeiro. És o que, nós tolos mortais,
quisermos que sejas: foice agonizante das dores eternas; suplício dos
sofrimentos carnais; trágico fim do amor desatendido; desilusão do filho
desvairido; fim sereno de uma doce existência... Mas também és certa como as
noites sem luar, as madrugadas sem sono e os ocasos de contemplação.
És sempre companheira querida nas horas de desilusão. Quem nunca gritou
por teu nome nos instantes de maior angústia; quem não pensou em antecipar tua
chegada por força dos sofrimentos. Mas sofrer é ínsito à vida, e tanto quanto
de ti própria, ninguém escapa das auguras da existência carnal. Te evocar antes
do teu tempo, que a ti, somente a ti, compete eleger, não é ato de coragem, mas
de extrema covardia. É ato de quem teme tanto a vida, que se desapega da morte.
Não nos visitas somente no termo final, mas ao longo de nossa
existência de quando em vez sopras teu suave veneno em nossas narinas
desatentas. Aquele avô doente e distante que partiu quando ainda éramos
crianças; aquele vizinho enfermo; o amigo de escola; a tia querida. Às vezes,
és mais veemente: a mãe prematuramente; o melhor amigo; o eterno amor; o filho
insubstituível... Não importa de que forma venhas, isto é uma desinteressante
questão de merecimento pessoal, que nada tem a ver contigo em si mesma. O fato
é que nos prepara desde tenra idade para a tua certeza, única infalível, mesmo
que todos os homens vivam para te negar. A verdade é que somos treinados de
crianças para não falarmos nem pensarmos em ti; para vivermos eternamente a
existência sofrida e desgastante da matéria. Como se valesse a pena tanta dor e
sofrimento sem a tua triunfante chegada ao final...
A cada encontro nos revelas uma face diferente. Às vezes és serena e
gentil, como aquele senhorzinho que parece dormir no caixão. Outras vezes vens
irada com o sangue e deformações do sofrimento extremo. Tu já torturastes
nossos irmãos, fazendo-os agonizar em terríveis provações, mas também já fostes
gentil quando atendeste suave ao convite da partida. És a mãe da guerra, mas
também o alimento do recomeço. Não és dor em si mesma, muito embora sejas
íntima dela.
Já te ouvi em sussurros, alertando que a vida não é vazia e que todas
as decisões dela geram uma conseqüência. Cuidado, me avisaste, porque ao termo
da tua existência, os erros serão teus e tua vida será minha. Com esta branda
dureza me ensinastes a alimentar a responsabilidade das decisões; a respeitar
os próprios sonhos que nutro além de perceber a fragilidade da vida. Também já
me falaste em silêncio, quando pela intuição me alertaste que a não ser pela
radical modificação de postura não tardaria muito nosso encontro derradeiro. E
por fim me foste mais escancarada ao, pela quase fatal enfermidade me ensinar
(por forma tão grotesca) que não devemos deixar para a tarde as tarefas
realizáveis pela manhã, porque aquela pode ser nossa última manhã. Foram três
já nossos encontros diretos. Alguns diriam que quatro, porque quando cheguei
nesta encarnação, tu partias com quem muito amava. Mas todos foram encontros
profícuos. Aprendi muito mais que imaginava, de forma que tu, o fim; o temor
personificado; o indesejável de todas as eras me trouxera anestesia às
angústias; bálsamo aos sofrimentos; esperança aos desalentos.
Mas afora estes encontros casuais, sempre fugi de ti. És fria e dura
demais, para desejar sentir teu bafo como o perfume de uma amiga. Não. Podes
ser sábia, forte e pujante. Mas não és amiga de ninguém. Podes ser necessária,
mas não és capaz de amar. Por mais que nós te façamos humana, como nossas dores
e sofrimentos, não és uma de nós, porque não és capaz de perdoar ou adiar o
necessário. Não choras as perdas, porque em sendo o nada, nada tens a perecer.
Simplesmente és por ser; uma peça na caótica engrenagem do universo, sem
qualquer sentido em si mesma, senão aos olhos dos tolos sábios que tudo pensam
saber, mas que porém não conhecem a mais ínfima de todas as razões do existir:
a vontade de viver simplesmente por viver. Por mais que nos digamos preparados
para tua fatídica visita, sempre queremos te enganar. Como, porém, não és uma
de nós, não te permites nos deixar te enganar. Não te enganas simplesmente
porque és necessária. E qual daqueles tolos sábios seria capaz de antecipar tua
visita por simples desprendimento? Aquele que assim agisse na verdade não seria
um tolo, mas um suicida, condenado à condenação perpétua de haver de ti se
enamorado. Qual pecado há em morrer se és a única certeza da existência
perceptível?
Mas também não adianta te discutir. És intransponível como certeza,
porém podes ser uma necessidade doce, como é o amor, rejuvenescedora como o
perdão mas também dura como a desilusão. És inerente à vida, mas podes ser almejada
como uma vitória. Não és nada ou simplesmente tudo que nós, tolos seres
humanos, conseguirmos fazer de ti. És o que és. Porque és. Simplesmente és e
nada mais.