MAIORIDADE
PENAL
O crescente em progressão geométrica da violência
no país, muito notadamente nos maiores centros, porém certamente que também em
todos os rincões do território nacional, vem sendo o combustível principal a
alimentar o debate sobre a necessidade de modificar a maioridade penal no
Brasil, pois sabidamente, aqueles que tenham menos de dezoito anos, contados na
data da consumação do delito, não respondem por fato criminoso propriamente
dito, mas por mero ato infracional. Em bom português, esta nuança técnica do
direito impõe um tratamento extremamente diferenciado quanto à solução que o
Estado brasileiro dispensa para a repressão do mesmo fato ilícito, desde que seja
cometido por diferentes sujeitos, um menor de dezoito anos e outro maior. Ao
adolescente, a lei reserva uma série de medidas sócio-educativas (jamais penas)
cuja mais severa consiste no internamento não superior a três anos. Já ao maior
de dezoito anos, desde que considerado cônscio do ato ilícito que praticou, se
destina um conjunto de penas, cuja mais dura delas é a reclusão de até trinta
anos. A brandura da lei quanto aos atos infracionais dos adolescentes e o
sabido uso deles por quadrilhas na linha de frente da prática de diversos
crimes, os violentes em especial, são a mola da discussão, pois esta tática da marginália
conduz não somente à impunidade, como também ao aumento da criminalidade. É um
verdadeiro ciclo vicioso, onde a falta de punição efetiva dos marginais menores
de dezoito anos alimenta a sensação de insegurança da população, mas também ao
descrédito da lei e do Estado (seja o Executivo, seja o Judiciário) como
instrumentos confiáveis na garantia da paz da sociedade, o que por sua vez
estimula mais ainda os delinqüentes a intensificarem seus atos criminosos.
Para a população em geral, este é mais um dos
muito hipócritas absurdos do direito brasileiro. Para os penalistas, contudo,
tudo parece fazer o mais racional dos sentidos. Essencialmente, os juristas
compreendem que somente poderá haver a incidência da lei penal quando o ato
afirmado em lei como crime, for cometido com a plena consciência da ilicitude,
pois o crime, enquanto ato humano, não pode comportar uma imputação objetiva,
factual somente, portanto, mas carece de uma reprobabilidade social, aferível
somente a partir de quando for o fato praticado com a consciência, intenção,
assunção do risco de produzir o resultado (o que impõe ser o mesmo previsto
pelo sujeito do crime) ou excepcionalmente com imperícia, imprudência ou
negligência, que são as três formas conhecidas de culpa. É a este conjunto de
dados que os juristas chamam de elemento
subjetivo do crime, que podemos resumir na vontade, consciência ou
previsibilidade do resultado. Sem este tal elemento subjetivo, simplesmente não
há crime. É a partir desta construção teórica, por exemplo, que os penalistas
afirmam categoricamente que um louco (porque não tem consciência da ilicitude
de sua ação) não comete crime. Aos inimputáveis em geral (como é bem o caso do
louco), não se aplicam penas, mas medidas de segurança nas hipóteses em que o
sujeito representar risco à sociedade.
A mesma lógica se desenvolve quanto aos
adolescentes, pois segundo o nosso Código Penal (no que é repetido pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente), presume-se que todas as pessoas com menos
que a maioridade penal (dezoito anos) não possuem consciência da reprobabilidade
e ilicitude da ação cometida. É diz que a nossa lei penal afirma
categoricamente que os latrocidas, desde que menores de dezoito anos, que
praticaram bárbaros delitos de morte em busca de minguada compensação financeiras,
mas também todos os delinqüentes na mesma condição, simplesmente não
compreendem que é errado o que fazem, pois não possuem ainda o desenvolvimento
mental adequado para compreender a ilicitude de suas ações. Magicamente,
continua nossa lei criminal, a partir da zero hora do dia em que completarem
dezoito anos, estes mesmos adolescentes incônscios serão agora dotados de pleno
discernimento, podendo então ser objeto do castigo da pena. Em essência, é este
o âmago do ensinamento dos penalistas, o que inequivocamente é uma arrogante
falsidade. Mesmo fugindo um instante apenas do tema, não podemos deixar de
perguntar o que merece o legislador e o cientista (os juristas se pretendem
cientistas, sim) que fundamentam suas decisões e pontos de vista a partir da
mentira. Talvez a punição mais severa devesse ser a deles, não dos adolescentes
infratores.
Porém, simplesmente modificar-se a maioridade
penal (tema que irrecusavelmente deve ser debatido e revisto pela lei
brasileira, não porque a violência esteja em crescente, mas porque a lei não
pode ser fonte da mentira, como ricamente encontramos exemplos no ordenamento
jurídico brasileiro), definitivamente não resolve o problema. Primeiro que tudo
advirta-se francamente que nem as penas nem as medidas sócio-educativas
reeducam ninguém. Os estabelecimentos destinados aos menores só não são
presídios superlotados, desumanos e qualificados instrumentos do crime
organizado na letra da lei, porque na realidade dos fatos acabam sendo muito
mais desumanos que os próprios presídios. Tanto os criminosos como os menores
infratores majoritariamente reincidem no crime, de maneira que encarcerá-los é
apenas estimulá-los a permanecer na delinqüência. Segundo, o direito criminal
jamais poderá ser instrumento de freio da violência, pois como argutamente
lembra um famoso jurista brasileiro, Luiz Flávio Gomes, o direito penal somente
poderá incidir após o crime cometido, ou iniciada sua execução, pois antes
deste marco simplesmente a lei não permite a aplicação de qualquer pena (é
dizer: o mal intencionado que espera nas sombras a passagem daquele a quem pretende
matar de emboscada não está cometendo nenhum crime, senão após o desfecho da
primeira facada morticida). Logo, devem ser outros os instrumentos da sociedade
que sirvam ao arrefecimento da violência presente.
Neste sentido, é preciso diagnosticar que a causa
da violência não está na maldade inata do ser humano, que precisa por isto ser
encarcerado e alijado do convívio com seus pares. A teoria maltusiana (que
dizia que as pessoas já nascem biologicamente programadas para a delinqüência) já
restou há mais de cem anos repudiada pela comunidade científica. As causas da
violência a encontramos na miséria, na fome, na falta de oportunidade de mobilidade
social, no processo sociológico da anomia (que seria um funil social, que alija
a grande maioria da população das oportunidades de crescimento material) e,
enfim, em todas as espécies de desigualdades que aparentemente transformam alguns
homens em pessoas melhores ou mais privilegiadas que outros. Se verdadeiramente
quisermos alijar a violência do seio da nossa sociedade, o caminho é o da
construção de instrumentos da igualdade e felicidade da população, não o do
encrudelecer das penas, que ao final das contas, não resolvem absolutamente
nada, pois são incapazes de serenar os corações encharcados pela injustiça e
pela revolta.
Não se modifica a realidade social por decreto,
como demagogicamente propõem a maioria dos políticos.
Jorge Emicles Pinheiro
Paes Barreto