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quinta-feira, 18 de julho de 2013


MAIORIDADE PENAL

O crescente em progressão geométrica da violência no país, muito notadamente nos maiores centros, porém certamente que também em todos os rincões do território nacional, vem sendo o combustível principal a alimentar o debate sobre a necessidade de modificar a maioridade penal no Brasil, pois sabidamente, aqueles que tenham menos de dezoito anos, contados na data da consumação do delito, não respondem por fato criminoso propriamente dito, mas por mero ato infracional. Em bom português, esta nuança técnica do direito impõe um tratamento extremamente diferenciado quanto à solução que o Estado brasileiro dispensa para a repressão do mesmo fato ilícito, desde que seja cometido por diferentes sujeitos, um menor de dezoito anos e outro maior. Ao adolescente, a lei reserva uma série de medidas sócio-educativas (jamais penas) cuja mais severa consiste no internamento não superior a três anos. Já ao maior de dezoito anos, desde que considerado cônscio do ato ilícito que praticou, se destina um conjunto de penas, cuja mais dura delas é a reclusão de até trinta anos. A brandura da lei quanto aos atos infracionais dos adolescentes e o sabido uso deles por quadrilhas na linha de frente da prática de diversos crimes, os violentes em especial, são a mola da discussão, pois esta tática da marginália conduz não somente à impunidade, como também ao aumento da criminalidade. É um verdadeiro ciclo vicioso, onde a falta de punição efetiva dos marginais menores de dezoito anos alimenta a sensação de insegurança da população, mas também ao descrédito da lei e do Estado (seja o Executivo, seja o Judiciário) como instrumentos confiáveis na garantia da paz da sociedade, o que por sua vez estimula mais ainda os delinqüentes a intensificarem seus atos criminosos.
                   Para a população em geral, este é mais um dos muito hipócritas absurdos do direito brasileiro. Para os penalistas, contudo, tudo parece fazer o mais racional dos sentidos. Essencialmente, os juristas compreendem que somente poderá haver a incidência da lei penal quando o ato afirmado em lei como crime, for cometido com a plena consciência da ilicitude, pois o crime, enquanto ato humano, não pode comportar uma imputação objetiva, factual somente, portanto, mas carece de uma reprobabilidade social, aferível somente a partir de quando for o fato praticado com a consciência, intenção, assunção do risco de produzir o resultado (o que impõe ser o mesmo previsto pelo sujeito do crime) ou excepcionalmente com imperícia, imprudência ou negligência, que são as três formas conhecidas de culpa. É a este conjunto de dados que os juristas chamam de elemento subjetivo do crime, que podemos resumir na vontade, consciência ou previsibilidade do resultado. Sem este tal elemento subjetivo, simplesmente não há crime. É a partir desta construção teórica, por exemplo, que os penalistas afirmam categoricamente que um louco (porque não tem consciência da ilicitude de sua ação) não comete crime. Aos inimputáveis em geral (como é bem o caso do louco), não se aplicam penas, mas medidas de segurança nas hipóteses em que o sujeito representar risco à sociedade.
                   A mesma lógica se desenvolve quanto aos adolescentes, pois segundo o nosso Código Penal (no que é repetido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), presume-se que todas as pessoas com menos que a maioridade penal (dezoito anos) não possuem consciência da reprobabilidade e ilicitude da ação cometida. É diz que a nossa lei penal afirma categoricamente que os latrocidas, desde que menores de dezoito anos, que praticaram bárbaros delitos de morte em busca de minguada compensação financeiras, mas também todos os delinqüentes na mesma condição, simplesmente não compreendem que é errado o que fazem, pois não possuem ainda o desenvolvimento mental adequado para compreender a ilicitude de suas ações. Magicamente, continua nossa lei criminal, a partir da zero hora do dia em que completarem dezoito anos, estes mesmos adolescentes incônscios serão agora dotados de pleno discernimento, podendo então ser objeto do castigo da pena. Em essência, é este o âmago do ensinamento dos penalistas, o que inequivocamente é uma arrogante falsidade. Mesmo fugindo um instante apenas do tema, não podemos deixar de perguntar o que merece o legislador e o cientista (os juristas se pretendem cientistas, sim) que fundamentam suas decisões e pontos de vista a partir da mentira. Talvez a punição mais severa devesse ser a deles, não dos adolescentes infratores.
                   Porém, simplesmente modificar-se a maioridade penal (tema que irrecusavelmente deve ser debatido e revisto pela lei brasileira, não porque a violência esteja em crescente, mas porque a lei não pode ser fonte da mentira, como ricamente encontramos exemplos no ordenamento jurídico brasileiro), definitivamente não resolve o problema. Primeiro que tudo advirta-se francamente que nem as penas nem as medidas sócio-educativas reeducam ninguém. Os estabelecimentos destinados aos menores só não são presídios superlotados, desumanos e qualificados instrumentos do crime organizado na letra da lei, porque na realidade dos fatos acabam sendo muito mais desumanos que os próprios presídios. Tanto os criminosos como os menores infratores majoritariamente reincidem no crime, de maneira que encarcerá-los é apenas estimulá-los a permanecer na delinqüência. Segundo, o direito criminal jamais poderá ser instrumento de freio da violência, pois como argutamente lembra um famoso jurista brasileiro, Luiz Flávio Gomes, o direito penal somente poderá incidir após o crime cometido, ou iniciada sua execução, pois antes deste marco simplesmente a lei não permite a aplicação de qualquer pena (é dizer: o mal intencionado que espera nas sombras a passagem daquele a quem pretende matar de emboscada não está cometendo nenhum crime, senão após o desfecho da primeira facada morticida). Logo, devem ser outros os instrumentos da sociedade que sirvam ao arrefecimento da violência presente.
                   Neste sentido, é preciso diagnosticar que a causa da violência não está na maldade inata do ser humano, que precisa por isto ser encarcerado e alijado do convívio com seus pares. A teoria maltusiana (que dizia que as pessoas já nascem biologicamente programadas para a delinqüência) já restou há mais de cem anos repudiada pela comunidade científica. As causas da violência a encontramos na miséria, na fome, na falta de oportunidade de mobilidade social, no processo sociológico da anomia (que seria um funil social, que alija a grande maioria da população das oportunidades de crescimento material) e, enfim, em todas as espécies de desigualdades que aparentemente transformam alguns homens em pessoas melhores ou mais privilegiadas que outros. Se verdadeiramente quisermos alijar a violência do seio da nossa sociedade, o caminho é o da construção de instrumentos da igualdade e felicidade da população, não o do encrudelecer das penas, que ao final das contas, não resolvem absolutamente nada, pois são incapazes de serenar os corações encharcados pela injustiça e pela revolta.
                   Não se modifica a realidade social por decreto, como demagogicamente propõem a maioria dos políticos.


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto