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sábado, 16 de março de 2019


CORONEL GUSTAVO AUGUSTO LIMA E OS CABRAS DE LAVRAS DA MANGABEIRA

Jorge Emicles


1. INTRODUÇÃO

                   Fenômeno social dos mais intricados, o cangaço é marcante na região hoje conhecida como nordeste brasileiro entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Sua forma mais palatável e repercutida na historiografia é a dos bandos de cangaceiros, que têm no famigerado Lampião sua expressão mais difundida. Se tratavam de bandos armados que circulavam por todo o sertão, invadindo fazendas e cidades, saqueando todos os bens de valor que pudessem surrupiar.
                   Pode parecer que esses fora da lei estavam totalmente em contrafação ao poder organizado no sertão nordestino, antagonicamente posicionados às forças políticas e bélicas da região. Contudo, são numerosos os relatos na historiografia de amizades e cumplicidades entre esses bandos e os coronéis, expressão máxima do poder local nesse período. Bem ao contrário, não foram poucas as vezes em que os coronéis se valeram da força belicosa do cangaço para a consecução de seus objetivos políticos.
                   Talvez o mais famoso desses casos, seja a concessão da comenda de capitão do batalhão patriótico da Guarda Nacional a Virgulino Ferreira, o Lampião, em festiva solenidade ocorrida em Juazeiro do Norte e presidida nada menos que por padre Cícero. À parte a polêmica inata que esse evento ainda hoje causa entre os historiadores, esse é apenas um exemplo, dentre tantos outros, de aliança entre os coronéis nordestinos e essa mão de obra mercenária, sempre pronta a servir a todos os interesses locais mediante recompensas que entendessem justas.
                   A mão-de-obra bélica dos coronéis nordestinos, entretanto, não se resumia apenas a esses mercenários. Havia um exército próprio, sempre de vigília para as lutas que se apresentassem, que nessa época eram quase cotidianas. No cariri cearense, destacou-se a relação com os chamados cabras. Conforme CALIXTO JÚNIOR (2017, p. 25), eram “em tempo de paz, trabalhadores do eito, meeiros e vaqueiros. Em tempos de guerra – cabras em armas. Viviam na dependência dos donos da terra, os coronéis latifundiários”.
                   O Cariri cearense é especialmente rico na cultura coronelata. Teve aí, seu apogeu de maior destaque na política nacional e na belicosidade de suas relações. Não são poucos os nomes que se destacam nesse período, como são os exemplos sempre citados dos coronéis Belém, Antônio Luiz, Antônio Róseo, Manoel Ribeiro, Domingos Leite, Antônio Leite e tantos outros, isso para ficarmos apenas em alguns exemplos. Claro que a figura mais proeminente entre todos é a do padre Cícero Romão Batista, para uns outro entre os coronéis, para outros o conselheiro e conciliador entre todos. Fato é que foi o padre o idealizador e grande fiador do chamado pacto dos coronéis, através do qual se buscava dar cabo à guerrilha travada entre eles na busca da consolidação do poder local. Fato é que o Juazeiro da época do padre Cícero conheceu muitos e famosos cabras. Fato é que esses foram elementos essenciais na tomada do poder estadual ocorrida no ano de 1914.
                   Mas igualmente não se poderá jamais abordar de maneira completa o fenômeno do coronelismo e suas intricadas relações com os cangaceiros, sem levar em conta ainda a elevada figura de dona Fideralina Augusto Lima e seu portentoso e tumultuado feudo, lugar em que reinaram várias gerações entre seus descendentes. De todos eles, o mais destacado é sem dúvidas o seu filho, coronel Gustavo Augusto Lima, que depois de sua mãe, foi de longe a maior e mais destacada liderança daquela região do Vale do Salgado, que por isso colecionou muitos correligionários e inimigos de destaque e força política, como é o melhor exemplo do poderoso Floro Bartolomeu, reconhecido alter ego político do próprio padre Cícero.
                   Sempre com o apoio inestimável dos seus cabras, tomou o coronel Gustavo seu lugar definitivo na história do Ceará e do coronelismo nordestino.
                   O presente artigo, se propõe a investigar a sua trajetória política, buscando desvelar o lugar apropriado de seu vulto nessa importante passagem da história regional e nacional.

2. A CHEGADA AO PODER

                   É nascido em 23 de agosto de 1861 no seio de uma das mais importantes famílias do Cariri. Filho, neto e bisneto de coronéis, teve desde a mais tenra idade convivência com a cultura do poder e as relações entre os latifundiários e seus cabras e escravos. Não se conhecem relatos nesse sentido, mas é quase certo que na sua infância de menino de engenho nos campos do sítio Tatu, símbolo dos domínios de sua mãe, teve muitas oportunidades de brincar no lombo dos escravos e subjugar os cabras da propriedade, numa relação que embora não o sendo de fato, era bem próxima à servidão medieval.
                   Uma das características mais marcantes da educação que recebeu de sua mãe, dona Fideralina Augusto Lima, foi o esmero pela instrução formal. Dizia a matriarca do clã dos Augustos que a próxima geração exerceria o poder a partir da força da caneta, não do bacamarte, como era na sua própria época, de sorte a que teve especial zelo com a educação dos seus filhos e netos (COUTO, 2018).
                   Não era o primogênito de dona Fideralina, mas o seu quinto rebento. De início não foi preparado para assumir a chefia do clã, lugar antes destacado para seu irmão mais velho, Honório, contra quem haveria de protagonizar um dos mais peculiares episódios do coronelismo caririense. Mesmo assim, foi enviado para estudar no tradicional Colégio do Padre Inácio de Souza Rolim, em Cajazeiras, onde também estudaram José Marrocos e o próprio padre Cícero Romão Batista.
                   Mas a sua vocação era para a política, o que bem cedo o levou ao protagonismo de famosa rixa com seu irmão mais velho.
                   Antes mesmo de tomar as rédeas do poder em Lavras da Mangabeira, exerceu vários cargos de honor, naturalmente sempre através das firmes mãos de sua matriarca. Antes de 1907 já havia exercido o cargo de coletor das rendas provinciais, membro do Conselho da Intendência Municipal e já ostentava a patente de coronel da Primeira Companhia do Batalhão da Guarda Municipal.
                   Foi em 26 de novembro de 1907 (MACEDO, 2017) que se deu o episódio, de longe, mais marcante de sua vida, que iria definir seu destino no mandonismo local, mas também na sua própria desgraça. Também é evento profundamente marcante na vida de dona Fideralina, cujas consequências retumbaram até a hora de sua morte. Pode-se dizer também que o passamento mesmo do coronel Gustavo, quase vinte anos depois, foi inevitável desdobramento desse terrível episódio de relevância política, sem dúvidas, mas sobremaneira marcante para todo o clã dos Augustos.
                   Era tão poderoso o mandonismo exercido pela tradição da família, que somente outro membro dela poderia desafiar as ordens da matrona. Ou pelo menos tentar. Foi exatamente o que fez o filho Honório Correia Lima, cuja descendência desboca no atual prefeito da capital Alencarina, Roberto Cláudio. Foi Honório o primeiro a dissentir da orientação política da mãe e por esforços próprios chegou a galgar a posição de líder do Partido Governista em Lavras.
                   Dona Fideralina, contudo, não admitia que ninguém brilhasse mais que ela mesma, o que a levou a tomar sérias providências. Após firme recusa do filho em ceder o lugar conquistado, resolveu toma-lo pelas armas. Valendo-se de seus destemidos cabras e sob a liderança de Gustavo, fez apear do poder não somente do partido, como da própria Intendência Honório. Foi o momento áureo da ascensão definitiva de Gustavo ao poder local, posto que foi no lugar do irmão.
                   Uma das histórias mais replicadas da velha Fideralina remonta exatamente a essa ocasião quando, ainda no alpendre do sítio Tatu, dirigiu aos cabras liderados por Gustavo a sentença de que “aquele que derramasse o sangue de Torto morreria” (MACEDO, 2017). Torto era o epíteto de Honório.
                   Dali em diante a família nunca mais se reunificaria, replicando aquela rusga original em vários outros episódios, que ao termo conduziram à própria morte de Gustavo.
                   Tanto Honório quanto seu irmão Gustavo eram casados com duas primas legítimas, ambas filhas de uma irmã de Fideralina, Dulcéria Augusto de Oliveira, conhecia por Pombinha. Naquele episódio, Pombinha tomou as dores de Honório, tendo se arregimentado a ele na indignação pela desfeita de Fideralina. Daí nasce a inimizade e oposição perpétua levada a cabo pelas irmãs até o final de suas vidas. Consta que já no leito de morte, Fideralina chamou a irmã para proceder às pazes, ao que Pombinha retrucou que não iria, que se fosse para perdoar, faria isso à distância mesmo (MACEDO, 2017). Uma vez que Honório se retirou para Fortaleza (jamais tendo retornado a Lavras), a liderança da oposição coube a Pombinha.
                   Outra cena folclórica, também decorrente desse episódio, se deu quando, a partir da queda da oligarquia de Nogueira Accioly, começaram a ser nomeados os novos Intendentes municipais adversários dos coronéis. A indicação para a Intendência de Lavras teve o patrocínio de Pombinha (tendo recaído na pessoa de seu genro, conhecido por Zé Burrego), que em cumprimento a promessa atravessou todo o largo da Matriz da cidade de joelhos, indo assim até o altar, em louvor pela graça alcançada, que era a aparente derrocada política e sua irmã (MACEDO, 1990).
                   Mas aquele foi apenas um hiato passageiro do poderio absoluto de dona Fideralina, seu filho Gustavo e a horda de cabras que lhes garantia o mandonismo.

3. A INVASÃO DE LAVRAS

                   No Cariri cearense, o fenômeno do coronelismo teve cores bem marcantes e violentas. Enquanto no âmbito nacional vigia a Velha República, no plano estadual foi o tempo do reinado despótico de Nogueira Accioly, que ganhou nas armas e nos cabras dos coronéis locais uma de suas forças mais consideráveis. Embora as fraudes eleitorais garantissem a vitória da situação em todo os pleitos, o poder nesse rincão era tomado a bala. A lei e a ordem prometidos pela autoridade maior da oligarquia Accioly de quase nada valiam.
                   Para ascender ou se manter no poder era imprescindível o fogo do bacamarte e a força dos cabras, arregimentados entre os trabalhadores braçais dos coronéis ou alugados quando era necessário fortalecer o regimento.
                   Nesse período, houve alteração no mando dos coronéis em quase todas as cidades caririenses. Sempre arregimentados pelo poder da bala, os inimigos simplesmente cercavam, dominavam o opositor e o depunham. Não houve um único caso de reação por parte do poder do Estado. A postura do comendador Nogueira Accioly sempre foi a de consagrar na Intendência municipal o coronel vencedor do embate (MACEDO, 1990).
                   Assim caiu o coronel Belém, em Crato, Neco Ribeiro em Barbalha e Antonio Roseo em Missão Velha. Um dos episódios mais marcados pela violência foi a chamada questão de 8 (porque ocorrido no ano de 1908), em Aurora, que antes da deposição do poder local do coronel Totonho Leite, deu azo à terrível chacina do Taveira, uma emboscada a mando do coronel Totonho e com a participação de homens do governo do Estado, que resistida, levou ao poder outra famosa matrona caririense, dona Marica Macedo, ou Marica do Tipi (MACEDO, 1990).
                   Esse derradeiro episódio teve reflexos indiretos no acontecimento de 1910 em Lavras da Mangabeira, onde no curso da sequência de levantes do poder local, também tentaram apear do poder o coronel Gustavo Augusto.
                   O acontecido teve vez em oito de abril de 1910, quando aproximadamente cento e cinquenta cabras, liderados por Quinco Vasques (Joaquim Vasques Landim), proveniente da serra de São Pedro (hoje Caririaçu), tomou as ruas de Lavras e apeio fogo de bacamarte contra a residência do coronel Gustavo Augusto Lima, que avisado com antecedência do ataque, havia arregimentado seu pessoal, o que possibilitou que resistisse com sucesso. Esgotada a munição do agressor, forçado foi a bater em retirada. CALIXTO JÚNIOR (2017) em obra específica sobre esse acontecimento não consegue identificar as razões precisas que teria Quinco Vasques para entregar-se a tão perigosa empreitada. Aduz, contudo, que “foi atribuída pelo Pe. Alencar Peixoto a responsabilidade do ataque a Lavras (...) aos mandões do Crato” (CALIXTO JÚNIOR, 2017, p. 55). Também em outra passagem do mesmo trabalho, conclui ter havido algum tipo de atrito entre Gustavo e Vasques desconhecido, contudo, das fontes históricas.
                   Do inquérito que foi instaurado para apurar tal ocorrido, o próprio Quinco Vasques confessa que ao cabo de sua missão deveria entregar a intendência a José Augusto de Oliveira, o Zé Burrego, por sua vez filho de Pombinha e cunhado do coronel Gustavo. Também, antes de invadir a vila de Lavras, Vasques pernoitou na propriedade do major Eusébio Tomás de Aquino, primo de Gustavo. Já na urbe, invadiram a casa do irmão de Gustavo, coronel Francisco Augusto Correia Lima. Apesar do parentesco com a vítima do ataque, ambas as personagens eram seus inimigos políticos, partidários da dissidente Pombinha (MACEDO, 1990).
                   Por sua vez, há evidências de que os derrotados de oito, em Aurora, intentavam fortalecer sua posição através da nova Intendência de Lavras, o que facilitaria a retomada de seu poder em Aurora. Conforme vaticina MACEDO (1990, p. 122), é preciso se considerar “as profundas vinculações de parentesco e amizade de José Augusto de Oliveira, ou seja, José Borrego, e José Leite de Oliveira com os Leites e Gonçalves de Aurora, os quais (...) haviam sido escorraçados, com seu chefe, o coronel Antônio Leite Teixeira, vulgo, Totonho Leite”.
                   Portanto, o ataque era claramente uma tentativa de substituir o poder de um coronel por outro, dessa feita com peculiaridade de serem os pretensos depositor e deposto membros da mesma família. Claro revide à deposição anos antes do coronel Honório. Só que dessa vez, foi vencedora a resistência, no único episódio no Cariri de manutenção do mesmo potentado após os ataques dos inimigos.
                   Logo no ano seguinte viria a ter fim a prática da deposição à bala. Não pela autoridade do oligarca Accioly, que seguia como sempre pusilanimemente referendando o vencedor pelas armas, alegando o fato consumado, mas pela arte nada menos que de padre Cícero, que valendo-se da autoridade e respeito que possuía sobre todos os contendores, arquitetou o famoso Pacto dos Coronéis, documento firmado em Juazeiro, sob a presidência do padre, que estabelecia o armistício e a instituição de procedimentos pacíficos de solução de futuros conflitos.
                   E desde então não houve mais refregas desse tipo no Cariri.
                   Os tiros de bacamarte, contudo, ainda não silenciaram, porque com a queda da oligarquia Accioly, veio a desgraça política de todos os coronéis locais, que humilhados viram a substituição de seus Intendentes por pessoas da confiança do novo Presidente do Estado, Franco Rabelo.
                   Era preciso derrubá-lo, pois. E a tempestade perfeita se apresentou quando o Presidente do Estado se recusou a apoiar a candidatura do todo poderoso Pinheiro Machado à Presidência da República.

4. A REVOLUÇÃO DE 1914

                   A oligarquia Accioly, que bem ou mal era o sustentáculo a nível estadual do poderio dos coronéis entra em ruína em janeiro de 1912, ascendendo então ao poder o coronel Franco Rabelo, vinculado à oposição e sem qualquer experiência ou leitura política das relações de poder local, inclusive porque estava afastado do Estado a longos anos.
                   Em seus primeiros atos, toma medidas não somente que o conduziriam ao afastamento dos coronéis, como finca trincheira no combate ao banditismo generalizado francamente tutelado pelas práticas deles. O rompimento era inevitável.
                   Em Lavras da Mangabeira, ascende então ao poder na Intendência municipal Zé Burrego, que apesar de seu parentesco com Fideralina Augusto Lima, era correligionário de sua irmã, Pombinha. É exatamente nesse ponto em que se deu o episódio do cumprimento da promessa de Pombinha, que de joelhos percorreu todo o caminho entre sua residência até o altar da matriz de São Vicente Férrer, em Lavras, episódio do qual já tratamos brevemente. Igualmente em todos os demais municípios caririenses foram sendo depostos os coronéis e seus prepostos, dando vez a uma nova casta de mandatários, tantas vezes mais ferozes que os depostos.
                   Bom exemplo desse período temos na deposição de Antônio Luís Alves Pequeno, Intendente aciolista em Crato, substituído que foi por Francisco José de Brito, o lendário Chico de Brito. Exatamente nessa ocasião, Chico de Brito, antes mesmo de receber a nomeação do novo Presidente do Estado, resolveu invadir o paço da Prefeitura e depor por suas próprias forças Antônio Luís. Indagado com base em qual lei fazia aquele ato, retrucou ser com fundamento na lei de sua arma. Foi assim que surgiu na tradição oral dos caririenses o famoso aforismo da lei de Chico de Brito. (MACEDO, 1990).
                   Como bem adverte PINHEIRO (2011), tamanha afronta ao poderio dos coronéis locais, assomada à oposição a nível nacional à então imbatível candidatura do gaúcho Pinheiro Machado à Presidência da República inevitavelmente levaria à deposição do novo governo.
                   A organização do levante coube propriamente a Floro Bartolomeu, que necessariamente agia como porta voz do padre Cícero. O sacerdote, por sua vez, chegou mesmo a negar em seu testamento qualquer responsabilidade sobre os acontecimentos que redundaram na deposição de Franco Rabelo (CAVA, 2014), mas naqueles idos ninguém duvidava de estar nas sagradas mãos do padre o direcionamento final de todo o processo de resistência. Naturalmente, como pela força da gravidade, todos os coronéis locais assomaram forças ao movimento de resistência de Juazeiro, inclusive o líder deposto de Crato, coronel Antônio Luís, que chegou na fase mais crítica do processo a se mudar para Juazeiro. (NETO, 2009).
                   O coronel Gustavo Augusto Lima e todo seu grupo político, inclusive sua mãe, tiveram importante participação nesse episódio tão singular da história do Cariri e de todo o Ceará. Tanto foi apoiador de primeira hora quanto hipotecou ao movimento dinheiro, armas e cabras, tendo tido relevante participação durante o desenrolar dos acontecimentos, rivalizando mesmo com a liderança de Floro Bartolomeu.
                   A guerra propriamente tem início com a invasão do Crato pelos romeiros ciceranos, seguindo em incontinente rumo ao litoral, até a derrubada da capital Alencarina. No caminho, pousaram as tropas no terreiro da velha Fideralina, no sítio Tatu, que os acolheu com mantimentos, além de agregar novos cabras e armamentos, necessário reforço para a intentona (MACEDO, 1990).
                   Quando as tropas rebeldes irromperam em Fortaleza, encontrava-se em sua vanguarda o coronel Gustavo Augusto Lima, sendo aclamado pelo comando da revolução como general de campo, em reconhecimento a suas sagazes estratégias (MACEDO, 2017). Também graças a seus movimentos no xadrez político galgou importante vitória sobre Floro Bartolomeu naquele primeiro instante de vitória, pois foi eleito vice-Presidente do Estado, acumulando ainda os cargos de intendente de Lavras da Mangabeira e Deputado à Assembleia Legislativa.
                   Por tal desfeita, jamais foi perdoado por Floro Bartolomeu, de quem se sagrou inimigo pelo resto da vida. Causaram espécie os pronunciamentos do médico baiano em desfavor da Gustavo Lima, acusando-o, entre outras desfeitas, de covarde, corrupto e até mesmo falsário, acusações amplamente repercutidas na imprensa local e nacional. Era agnominado pelo deputado de “herói das fugas” (CALIXTO JÚNIOR, 2017). Há uma série de oito artigos publicados por Floro Bartolomeu no periódico O Unitário, de Fortaleza, intitulados todos de “Formal Desmentido”, no âmbito dos quais desbulha as detratações contra seu inimigo.
                   Conta a tradição oral não somente que Gustavo Lima prometeu mandar moer Floro nas moendas do engenho do Pau Amarelo (sítio de sua propriedade), como que o médico e deputado, quando vinha de trem de Fortaleza em direção a Juazeiro, desembarcava sempre em Iguatu e não em Lavras, que seria à época a última estação da rede ferroviária (por isso, mais próxima de seu destino), exatamente por temor à vindita da família Augusto. O fato é que nem o destempero de Floro foi capaz de por freio ao destemido Gustavo.
                   Destemor que encontraria ainda assim fim dentro das artimanhas tramadas no seio da própria família.

5. O DIA DO BARULHO

                   Era tão grande e indevassável o potentado dos Augustos, que somente outro membro do clã teria a audácia de tentar destrona-los. A própria invasão de Lavras em 1910, como já destacado, tem a sogra e o cunhado de Gustavo entre seus mentores e beneficiários últimos.
                   Foram exatamente os desdobramentos da derrubada de Honório Correia Lima por sua mãe que fizeram germinar a ferrenha oposição contra Gustavo e sua genitora no seio da própria família, cujos desdobramentos desaguaram nos acontecimentos de nove de janeiro de 1922. Naquele tempo, a velha dona Fideralina já não mais contava entre os vivos faziam três anos. Sua ausência em carne fez acirrar ainda mais as antigas contendas, a ponto de todos resolverem solucionar o histórico entrevero literalmente à bala. Conta a tradição oral que a cidade de Lavras àquele dia foi dominada por tiroteio generalizado entre familiares. De um lado, Zé Burrego e José Leite de Oliveira (Zé Leite), que apesar de inimigos de Gustavo eram seus primo e cunhado.
                   Vários membros da família mudaram-se de Lavras da Mangabeira após a hecatombe, a exemplo de Amâncio Lacerda Lei e sua mulher Lídia, ambos netos de Fideralina, ela filha do próprio Gustavo.
                   O coronel Gustavo não estava em Lavras àquele dia, mas pagou preço alto pelo acontecimento, pois a ele foi atribuída a matança. Do lado de Gustavo Augusto Lima, restou baleado seu filho Raimundo Augusto, prefeito Municipal e herdeiro político do pai (último dos Augustos a chefiar o poder local por várias décadas, pois após a decadência política de Raimundo Augusto, que somente aconteceria na segunda metade dos anos 1970, um Augusto voltaria a ocupar a prefeitura local somente em 2012, na pessoa de Gustavo Augusto Lima Trineto, o Tavinho). Pela oposição o derramamento de sangue foi maior, pois foram homicidados, José Leite Filho, o Zezinho, que era filho de Zé Leite e genro do coronel Gustavo; Simplício Augusto Leite, igualmente filho de Zé Leite e ainda o major Euzébio Tomas de Aquino, sobrinho de Pombinha e Fideralina.
                   Coube a um dos filhos de Eusébio, Raimundo Augusto de Aquino, conhecido por Raimundo de Eusébio, praticar o desfecho final dessa história de ira e sangue entre parentes. Como consequência direta do Dia do Barulho, Raimundo de Eusébio, em 28 de janeiro de 1923, às vinte e uma horas, em plena praça do Ferreira, Fortaleza, dentro do chamado bonde do oiteiro, em frente ao então bar da Gruta, assinou a tiros de revólver o coronel Gustavo, então em companhia de duas de suas filhas, quem veio a falecer dias depois ainda em Fortaleza (CALIXTO JÚNIOR, 2017). Registra MACEDO (1990) que ao perceber o ataque, coronel Gustavo adiantou-se ao seu agressor de braços abertos, no gesto de proteção de suas filhas, numa prova final do caráter destemido que tanto o marcaram.
                   Somente assim teve fim a guerra surreal no seio da mesma família, tornada possível apenas graças à força e lealdade dos cabras, figuras tão importantes para a história do Cariri naqueles tempos.
                   Não houve tentativa de vingança à morte de Gustavo, mas seu filho Raimundo Augusto seguiu na liderança do clã por pelo menos mais cinquenta anos.

6. CONCLUSÕES

                   O fenômeno social do cangaço possui várias formas. No interior do Ceará a mais difundida delas é a dos chamados cabras, homens que viviam sob a proteção dos coronéis, grandes latifundiários que eram, servindo-lhes nas lidas do campo em tempos de paz e como soldados em épocas de guerra.
                   Foi graças à valentia desses homens rudes e fiéis que se ergueu e sustentou o coronelismo, notadamente na região sul do Ceará, ou Cariri. Através desses cabras, esses poderosos se sustentaram no poder, mas também depuseram seus adversários, como igualmente foram depostos pelos inimigos.
                   Chegou a tal ponto esse potentado, que na fase área desse período, foram capazes de tomar o poder no Estado, no episódio conhecido como a Sedição de Juazeiro. Os grandes líderes desse movimento e mesmo os maiores símbolos do poder local na época, são sem dúvidas padre Cícero Romão Batista e a Floro Bartolomeu da Costa, seu alter ego político. Mas não é possível conhecer a verdadeira dimensão desse período sem o estudo da singular figura de Fideralina Augusto Lima e seu herdeiro político e filho, coronel Gustavo Augusto Lima, que se sagrou líder ainda mais destacado que o próprio Floro Bartolomeu na deposição de Franco Rabelo em 1914.

7. REFERÊNCIAS

CALIXTO JÚNIOR, João Tavares. Considerações Sobre a Invasão de Lavras em 1910. 2ª Ed. Expressão Gráfica e Editora. Fortaleza. 2017.
CAVA, Ralph Della Cava. Milagre em Joazeiro. Companha das Letras. São Paulo. 2014.
COUTO, Cristina. A Tragédia de Princesa. O caso Ildefonso de Lacerda Leite. Expressão Gráfica. Fortaleza. 2018.
GONÇALVES, Rejane Monteiro Augusto. MACEDO, Joaryvar. Os Augustos. ABC Editora. Fortaleza. 2009.
MACEDO, Dimas. Dona Fideralina Augusto. Mito e Realidade. Armazém da Cultura. Fortaleza. 2017.
MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte. UFC. Cada de José de Alencar. Programas Culturais. Fortaleza. 1990.
NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. Companhia das Letras. São Paulo. 2009.
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. 2ª Ed. IMEPH. Fortaleza. 2011.


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